sexta-feira, 6 de maio de 2016

Direito Internacional em Foco: Saúde®: o dilema ético das patentes de medicamentos


A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.



Saúde®: o dilema ético das patentes de medicamentos
Até que ponto a busca insaciável pelo lucro se sobrepõe à necessidade dos doentes?

Bruno Araldi, Gabriela Blasi de Andrade e Richard Gomes


            Não é necessária uma análise aprofundada para perceber que o setor farmacêutico é, antes de qualquer coisa, um grande e poderoso conglomerado capitalista que visa o maior lucro possível na venda de medicamentos - independente do que precise fazer para alcançá-lo. As indústrias farmacêuticas sediadas em países desenvolvidos utilizam de sua influência junto ao governo – representada em grande medida por doações às campanhas políticas e a pela contribuição substantiva no Produto Interno Bruto (PIB) – para proteger seus interesses, especialmente no que tange à propriedade intelectual. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o reconhecimento de patentes aliado ao menor nível de desenvolvimento do setor e às frequentes crises de saúde pública aumenta a dependência nacional por drogas importadas, fato que encarece sua obtenção e consequentemente inviabiliza seu acesso universal.

A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994 representou a institucionalização de uma nova ordem monetária e comercial baseada em princípios neoliberais. Os Estados Membros da organização assinaram uma série de acordos multilaterais, dentre eles o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS – Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), o qual estabeleceu a obrigatoriedade de reconhecimento da propriedade intelectual para todos os campos tecnológicos, incluindo o setor farmacêutico.

Assim, a partir do Acordo, a proteção de suas patentes das indústrias de medicamentos para além das fronteiras de seus países sedes adquiriu a chancela da OMC, garantindo-lhes mais segurança para estipular preços acima dos custos marginais e obter lucros sem temer a concorrência de cópias mais acessíveis. Em outras palavras, o Acordo acabou por possibilitar o aumento exorbitante dos preços dos medicamentos, prejudicando os países em desenvolvimento dependentes de sua importação, e fortalecendo as oligarquias farmacêuticas com sede em países desenvolvidos.

Não são raros os exemplos de como a indústria de medicamentos usa a garantia de patentes para manipular preços a fim de maximizar lucros. Um caso emblemático é o do Daraprim (nome comercial para a droga pirimetamina), medicamento utilizado no combate a infecções causadas por parasitas, especialmente perigosas para pessoas com o sistema imunológico enfraquecido – como é o caso de portadores do vírus HIV. Sua patente foi comprada em agosto de 2015 pela Turing Pharmaceuticals, então dirigida por Martin Shkreli. Após a aquisição da propriedade intelectual da droga, seu preço saltou de U$13,50 para U$750,00, representando um aumento de mais de 5000%. Seguiu-se imediatamente uma crise nos hospitais que utilizavam o medicamento em coquetéis contra o vírus HIV. Entidades como Infectious Diseases Society of America e HIV Medicine Association manifestaram repúdio ao aumento dos preços, alegando ser injustificável e insustentável para o sistema de saúde. Em resposta, a empresa alegou acreditar que o aumento não causaria impacto no sistema, por se tratar de um medicamento “de uso não tão comum”. O flagrante desinteresse da empresa causou grande revolta nos Estados Unidos, ainda mais após a declaração de Shkreli de que o aumento dos preços tratava-se de "nós tentando permanecer no negócio" e que era uma medida necessária para que “melhores tratamentos fossem desenvolvidos”. Inevitavelmente, pacientes que necessitam do medicamento terão que procurar tratamentos alternativos, correndo o risco de não obter a mesma eficácia. 

Martin Shkreli, ex-CEO da Turing Pharmaceuticals
         
        No Brasil a mesma droga é fabricada e patenteada pela Farmoquímica S/A, e é vendida pelo preço de R$ 7,00, não dependendo assim da droga norte-americana produzida pela Turing Pharmaceuticals. No entanto, nem todos os países são capazes de suprir as próprias demandas internas por medicamentos e, com certeza, enfrentariam problemas sérios de saúde pública se empresas como a Turing tivessem liberdade absoluta sobre os preços no comércio de remédios. 

            Felizmente, o Acordo TRIPS permite que os países signatários incluam em suas legislações algumas salvaguardas que possam garantir proteção à saúde pública. As principais flexibilidades previstas no Acordo TRIP são: licença compulsória (artigo 31) – licenciamento de companhias ou indivíduos a usar, vender ou importar produtos patenteados sem autorização do detentor da patente –, importação paralela (artigo 6), exceção Bolar (artigo 30) – permissão para que terceiros, que não o titular da patente, iniciem o processo de pesquisa e registro de um medicamento antes de sua patente expirar –, uso experimental (artigo 30) e atuação do setor da saúde nos processos de análise de pedidos de patentes farmacêuticas (implícita no artigo 8).

             Em 2000 o governo brasileiro se opôs aos laboratórios estadunidenses, quando demandou o direito de override (passar por cima) da exclusividade de comercialização e produção (market exclusivity) de medicamentos usados no tratamento do HIV, utilizando-se do argumento de que o bem-estar público deveria prevalecer sobre o lucro. Foi decretado pelo Ministério da Saúde do Brasil um congelamento dos preços dos medicamentos para o tratamento da AIDS, medida que visava forçar as indústrias detentoras de patentes a diminuir os seus preços. Do contrário, o artifício da licença compulsória previsto no artigo 68 da Lei 9279/96 – Lei de Propriedade Industrial responsável pela internalização das regras de direito internacional estabelecidas no âmbito do Acordo TRIPS - seria colocado em prática. O governo dos Estados Unidos recuou e negociou uma solução amigável com o governo brasileiro, evidenciando o temor de que o Brasil utilizasse desse artifício e abrisse precedentes para que outros países em desenvolvimento fizessem o mesmo. 

Questões referentes à saúde tomaram, entre outros temas, atenção especial na Rodada Doha de negociações da OMC, o que levou em 2001 à "Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública". Nela, reafirmou-se a importância da proteção à propriedade intelectual como fator para a produção de novos medicamentos, embora tenha se afirmado expressamente que o Acordo TRIPS não impede nem deve impedir que os Estados signatários adotem medidas de proteção à saúde pública.

            É certo que a criação da OMC e a posterior assinatura do Acordo TRIPS geraram uma grande polêmica em relação à postura das empresas farmacêuticas, no que concerne ao conflito lucro versus ética. Apesar da formalização de mecanismos para a prevenção de tais abusos e de uma pressão pela redução dos preços ou negociação de licenças voluntárias, não há ainda garantias de que os países desenvolvidos, em nome de suas grandes corporações, não buscarão meios oblíquos de manter tais práticas - mesmo com o discurso da liberalização dos mercados. Segundo o advogado e economista Carlos M. Correa, professor da Universidade de Buenos Aires, a tendência é que a controvérsia ainda se mantenha conforme os países desenvolvidos buscarem proteção fora do TRIPS e através de acordos bilaterais, bem como ao combaterem ou bloquearem a concorrência dos genéricos. Apesar dos esforços representados pelos artifícios de flexibilização do TRIPS e pela atuação de países em desenvolvimento na OMC, ainda não há um analgésico efetivo para o combate a ânsia insaciável por maximização de lucros no sistema internacional contemporâneo. 

Fontes consultadas:

CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS R. Acesso a Medicamentos e Propriedade Intelectual no Brasil: Reflexões e Estratégias da Sociedade Civil.
OLIVEIRA M. F. O contencioso Brasil x Estados Unidos sobre patentes farmacêuticas na OMC.
CARVALHO P. L. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual: a Relação da Patente Farmacêutica com o Acesso a Medicamentos.
COSTA J. A. F. Do GATT à OMC: a perspectiva neoliberal institucionalista.
FANG, J. (2015). This Guy Just Raised The Cost Of An HIV Drug By 5000%. IFLSience. Disponível em: <http://www.iflscience.com/health-and-medicine/price-parasite-fighting-drug-jumps-1350-750-pill> Acesso em: 30 abr. 2016.
CORREA, C. M. O Acordo TRIPS e o acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, 2005, vol. 2 no. 5. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000200003> Acesso em: 30 abr. 2016.
IV Conferência Ministerial da OMC, Doha, 2001. Declaração Sobre o Acordo de TRIPS e Saúde Pública (versão em português). Disponível em: <http://bioeticaediplomacia.org/wp-content/uploads/2013/10/Declaracao-sobre-o-Acordo-de-TRIPS.pdf> Acesso em: 02 mai. 2016.
G1 Bem Estar, 2015. Remédio que teve aumento de 5.000% nos EUA mantém preço no Brasil. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/09/remedio-que-teve-aumento-de-5000-nos-eua-mantem-preco-no-brasil.html> Acesso em: 02 mai. 2016.
INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, 2015. DECRETO No 1.355, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1994. Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (versão em português). Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf> Acesso em: 02 mai. 2016.

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