A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2017 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.
A atual situação curda na Turquia diante da presidência de Tayyip Erdogan
Devlin Biezus *
O povo curdo forma o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, mas não possui um Estado. Dispersos pelas regiões da Turquia, Irã, Iraque, Síria e Armênia, os curdos reivindicam reconhecimento, autonomia ou até mesmo independência desde a queda do Império Otomano. O Tratado de Sèvres, que instaurou a paz entre Império Otomano e o grupo de países aliados após a Primeira Guerra Mundial, foi responsável pelo desmembramento do Império, além de dar direito à independência da Grécia, da Armênia e do Curdistão. Porém, o Curdistão não chegou a ser formado, já que três anos após o Tratado de Sèvres, o Tratado de Lausanne estabeleceu as atuais fronteiras turcas e ignorou a criação de um Curdistão, deixando os curdos como uma minoria dentro dos novos Estados formados a partir do desmantelamento do Império Otomano. Devido ao fato dos curdos estarem divididos entre diversas fronteiras, suas reivindicações políticas não são uniformes. Alguns defendem uma autonomia, outros a independência dentro dos países que vivem e há também quem apenas defenda o direito de exercer sua cultura e ter uma participação na vida política.
Na Turquia, os curdos formam 19% da população e estão majoritariamente localizados na porção leste e sudeste do país. A fundação da Turquia como um Estado moderno por Mustafá Kemal Paschá (conhecido como Kemal Atatürk) foi pautada sobre a ideologia de uma nacionalidade turca única, assim, prevenindo qualquer perda territorial. Apesar de Atatürk (epíteto de Kemal que, em turco, significa “pai dos turcos”) ter modernizado e laicizado a Turquia, o custo para criar uma identidade nacional única foi a dura repressão das minorias. Curdos passaram a ser chamados de “os turcos das montanhas”, devido às características geográficas da região em que vivem; o idioma e costumes curdos foram proibidos, dando início a uma política de negação à identidade curda.
Como resposta à alta repressão ao povo curdo, no final da década de 1970 foi formado o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). O partido possui raízes marxistas-leninistas e é considerado como um grupo terrorista pelos EUA, Turquia e União Europeia. Inicialmente, o PKK defendia a independência de um Estado curdo dentro da Turquia. Em 1984, o grupo passou a utilizar da luta armada para tentar atingir seu objetivo. Assim, iniciou-se o conflito entre o Estado turco e o PKK que ocorre até o presente. Atualmente, as reivindicações do partido mudaram para a obtenção de uma autonomia curda dentro das fronteiras territoriais turcas, além de poder exercer sua cultura livremente.
Uma trégua foi alcançada entre a Turquia e o PKK em 2013. Ela prolongou-se por dois anos, até a entrada do governo turco na luta contra o autointitulado Estado Islâmico (DAESH, ou ISIS, em sua sigla em inglês). A Turquia passou a bombardear não apenas bases do grupo extremista, mas também as posições do grupo PKK, que estava combatendo o DAESH ao norte do Iraque. Os ataques militares contra o PKK foram considerados pelos grupos curdos um instrumento político do partido governista AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), o qual pretendia alcançar a maioria parlamentar nas eleições no fim de 2015.
Essas eleições parlamentares de fato foram vencidas pelo AKP, partido do atual Presidente turco que recuperou a maioria no parlamento. O Presidente Recep Tayyip Erdogan está no poder desde 2002, foram onze anos como Primeiro-ministro e em 2014 ascendeu à presidência. Umas das principais características do mandato de Erdogan são suas declarações polêmicas e seu crescente autoritarismo. Em 2014, o Presidente afirmou que as famílias muçulmanas não devem usar métodos contraceptivos para controle familiar. Em 2016, Erdogan chegou a declarar que “mulheres que não possuem filhos são incompletas”. O autoritarismo de Erdogan ficou mais evidente depois da dúbia tentativa de golpe no país, em julho de 2016.
A tentativa do golpe de Estado envolveu várias facções do exército e serviu como uma pertinente justificativa para diversos atos autoritários, como a declaração do estado de emergência por três meses, expurgos no exército, prisão de pelo menos 21 mil professores, fechamento de 620 instituições universitárias e de diversos canais de comunicação. Em novembro de 2016, doze parlamentares pró-curdos foram presos, pois haviam se recusado a responder sobre acusações de terrorismo. Todos esses atos culminam na vontade de Erdogan em transformar a Turquia de um regime parlamentar para um presidencialismo, o que permitiria estender seu mandato até 2029.
A questão presidencialista será decidida em um referendo popular em 16 de abril. Se o projeto for aprovado, o Presidente conseguirá governar sem consultar o parlamento em relação a assuntos de competência executiva. Ele também poderá nomear os altos escalões militares, chefes de inteligência, reitores universitários e juízes de altas instâncias. Comunidades curdas fora da Turquia já manifestaram seus posicionamentos em relação ao referendo. Nesse mês de março, em Frankfurt, cerca de 30 mil curdos que moram na Alemanha marcharam a favor do “não” ao presidencialismo, justificando que esse regime apenas pioraria a situação curda na Turquia.
Um regime presidencialista sob comando de Erdogan afetaria negativamente as reivindicações dos grupos curdos. No parlamento, o Partido Democrático dos Povos (HDP) é a terceira maior força política e o principal defensor democrático dos curdos. Com a prisão dos doze de seus parlamentares, fazer uma oposição ao presidente fica cada vez mais difícil, e como consequência, a luta armada do PKK contra o governo turco tende a ser mais intensa.
* Devlin Biezus é internacionalista, egressa do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".