terça-feira, 31 de março de 2020

Em pauta: Olimpíadas de Tóquio 2020+1 - a primeira da era moderna a ser adiada

Por Fernando Yazbek*



De quatro em quatro anos o mundo pára para assistir a essa tradição que é antecessora ao cristianismo e mais antiga até que os países que nela competem. Os Jogos Olímpicos, como expressão atlética do mais alto nível, chamam a atenção do público geral em proporções astronômicas: foram 2,5 bilhões de espectadores  da cerimônia de abertura do evento no Rio de Janeiro, em 2016. Mas é pela sua magnitude antiquíssima e universal que as olimpíadas captam mais ainda os olhares de historiadores e internacionalistas. Crê-se que por volta de 776 a.C. na Grécia Antiga se realizaram os primeiros jogos no santuário de Zeus, em Olímpia, como um festival esportivo e religioso. O evento era marcado pelas competições esportivas de luta e corrida, pelo caráter mitológico de homenagem aos deuses do Monte Olimpo e, principalmente, pela trégua universal entre as cidades-estado constantemente em guerra. Apesar do armistício e da fraternidade dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, apenas cidadãos gregos podiam participar. Já na era cristã do ano de 393, os jogos foram suprimidos pelo imperador romano Teodósio I, que proibiu o paganismo da competição. 

          O marco moderno das olimpíadas foi a criação do Comitê Olímpico Internacional (COI) em 1894, que organizou a primeira edição da nova era dois anos depois em Atenas, Grécia. Os gregos tinham acabado de conquistar, em 1830, a independência do domínio turco e os jogos de 1896 foram uma maneira de resgatar a cultura clássica do país. Nesta primeira olimpíada moderna competiram 14 países. No Rio, em 2016, eram 206 delegações. As mudanças da geopolítica nesse século e quarto moldaram os jogos, impulsionados pelas tecnologias da revolução industrial e os esportes de massa, cancelados pelas guerras mundiais e boicotados pelos polos na Guerra Fria. Já se viu de tudo desde então: competições que eram mais políticas que esportivas, maratonista sendo atropelado em 2004, bola entrando no gol direto do escanteio em 1924, atleta negro faturando quatro medalhas de ouro na frente de Hitler em plena Berlim de 1936, o primeiro atentado terrorista considerado global em 1972 e o primeiro ouro olímpico para um pais da África em 1960 depois da descolonização. Nunca houve na modernidade, no entanto, um adiamento.

          O coronavírus, que ataca a China desde o final de 2019 e o ocidente desde o começo de 2020, contabiliza, até o momento, mais de meio milhão de infectados pelo mundo em todos os continentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a considerar a doença uma pandemia de dimensões apocalípticas. Baseado nas recomendações de segurança da OMS e no crescente número de vitimados pelo covid-19, o COI decidiu - no dia 24 de março - pelo adiamento de um ano dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Para entender as repercussões dessa decisão sem precedentes, entrevistamos dois jornalistas esportivos, um historiador e uma ex-atleta que falaram de cronograma, dos impactos históricos e esportivos, da punição por doping imposta à Rússia e de xenofobia nas olimpíadas.

          Daniel Emmendoerfer Castro é jornalista e trabalha na Folha de São Paulo desde 2015. Ele era o repórter designado para a cobertura do evento neste ano, pelo veículo.  Quando perguntado sobre como o COI atuou no processo de adiamento, o repórter olímpico ponderou que a decisão tomada com quatro meses de antecedência foi razoável, mas que o comitê falhou em não se posicionar ao lado dos atletas desde a eclosão da pandemia. Para ele, houve uma demora para admitir que poderia haver sim o adiamento, uma vez que queriam entregar a definição de uma nova data dos jogos (definida quase uma semana depois da postergação) junto à noticia da suspensão. Castro ressalta que se abre um precedente inédito com uma olimpíada realizada em ano ímpar, já que mesmo nos cancelamentos com as guerras se respeitou o quadriênio: “saindo do livro de regras, quebra-se um tabu”.

          De fato, houve muita demora na decisão do COI e, se não fosse pela pressão do governo japonês, “talvez demorasse mais”. Foi isto o que nos disse o jornalista Ayrton Batista Junior, da rádio CBN (Central Brasileira de Notícias) e do site globoesporte.com. Ele discorda de Daniel Castro de que se abre um precedente importante na história dos jogos olímpicos por se tratar, no contexto da pandemia do coronavírus, de um fato "absolutamente extraordinário". “Tusca Jr”, como é conhecido o filho de Ayrton Batista - três vezes presidente do Sindicato dos Jornalistas do Paraná e duas vezes secretário de estado de imprensa -, nos lembra do tenista paranaense Thiago Wild que contraiu o covid-19 no pré-olímpico. Sem o adiamento, Wild perderia todas as chances - ainda que remotas como frisou Batista - de participar dos jogos em Tóquio se fossem em 2020.

          Daniel e Ayrton concordam que um ano faz muita diferença na perfomance esportiva de um atleta de alto desempenho. Mas, por cada competidor reagir à sua própria maneira, não há como cravar que algum país se beneficiaria do adiamento no quadro de medalhas. O repórter da Folha frisa que atletas experientes têm a vantagem de conhecer melhor o próprio corpo, na mesma medida que esportistas mais jovens terão mais tempo para se desenvolver. Ele conclui, no entanto, que nunca saberemos os medalhistas de 2020 que, certamente, não serão os mesmos de 2021. Já o produtor da CBN Esportes nos alerta para a situação delicada das ginásticas com o adiamento. "Ter 19 anos é muito diferente de ter 20. O auge [do ginasta] é precoce e dura muito pouco”. Diferente é a situação do futebol masculino, em que só se permitem jogadores de até 23 anos. Resolve-se, facilmente, afrouxando o limite de idade para 24, afirmou Ayrton Batista Junior.

          Outro assunto que fez os colegas jornalistas discordarem foi a suspensão imposta pela Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) à Rússia, proibida de ser representada em Tóquio 2020 e nos jogos de inverno de Pequim em 2022, além da Copa do Mundo do Catar nesse mesmo ano. “[O adiamento dos Jogos] não altera nada. Mesmo que a punição fosse apenas para os Jogos de 2020, deveria ser mantida porque o COI pretende continuar com o ano 2020 na marca do evento”, disse a “enciclopédia ambulante”, apelido carinhoso de Batista Jr. Para Daniel Castro, na antemão, a suspensão de Tóquio faz como que haja tempo hábil para haver julgamento da apelação russa na Corte Arbitral do Esporte, instância máxima do direito esportivo. Havia temores, para Castro, de que não houvesse julgamento. O adiamento dos jogos acabou, portanto, dando chances para que ocorresse a apuração. Havendo decisão - favorável ou contrária - quanto à Rússia, continua o repórter, acaba-se com a insegurança jurídica que paira sobre as federações, que tratam os russos cada qual de sua maneira. Ele finaliza reiterando que o cabo-de-guerra entre a Rússia, que se sente historicamente injustiçada, e os Estados Unidos, que lideram o lobby para punições severas a Moscou, só cria incertezas para todos do o universo esportivo.

          Batista Jr e Castro afinaram as respostas quando o assunto foi xenofobia. O  surto do novo coronavírus, motivo do adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio2020 no Japão, teve seu epicentro na vizinha China. Apesar de não haver fronteira terrestre entre os países, o preconceito não respeita território. Muitos casos de xenofobia contra asiáticos foram registrados na Europa, Estados Unidos e América Latina desde a explosão da pandemia. Até mesmo Donald Trump, presidente da maior potência militar do mundo, se referiu ao covid-19 como “vírus chinês”. Gesto foi repetido no Brasil pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e filho do Presidente da República, que deflagrou uma crise diplomática com o maior parceiro comercial brasileiro. Mesmo que a ignorância confunda um vírus com um ser humano, Ayrton Batista Junior recorda que “a comunidade esportiva sempre deu exemplos de solidariedade” e que os boicotes dos EUA aos jogos de Moscou em 1980 e da URSS à olimpíada de Los Angeles em 1984 foram promovidas por estados e governos, não pelo corpo esportivo. Daniel vê na xenofobia um grande mal do esporte globalizado, mas acredita que o mundo esportivo tem pautado causas sociais com maior atenção, haja visto a crescente onda de racismo que se observa em jogos de futebol por todo o continente europeu. Ele também acredita que o COI deve ficar vigilante quanto à intolerância, embora o próprio comitê internacional seja historicamente distanciado de tópicos como este. Por sua abrangência global, o COI proíbe manifestações políticas durante competições dos Jogos Olímpicos. Castro ainda sublinha preocupação na relação hostil que o Japão nutre de longa data com as próximas China e Coréia do Sul.

          O Blog Internacionalize-se também ouviu a ex-atleta, e também jornalista, Juliana Veiga. Ela cobriu os Jogos Olímpicos de Londres em 2012 e do Rio de Janeiro em 2016 na bancada do telejornal esportivo SportCenter, no horário nobre da emissora ESPN Brasil. Veiga, que é pentacampeã brasileira de snowboard, conhece bem os dois lados do jornalismo esportivo e por isto viu com bons olhos o adiamento já que “cuidar das vidas é prioridade, tanto de atletas quanto de jornalistas”. Disse que a demora na tomada de decisão era esperada, por haver infinitos fatores logísticos, esportivos e comerciais a serem costurados com a suspensão. A pioneira do surfe na neve no Brasil explicou que, mesmo que a quarentena, o distanciamento e o isolamento social - para frear o avanço do vírus - afetem os treinos, os atletas tem maior facilidade para ajustar a rotina e se recuperarem de lesão. Para ela, as Olimpíadas de Tóquio não trarão  grande prejuízo esportivo dos competidores, mas sim emocional da sociedade como um todo.

          Para finalizar, o Blog ouviu o historiador Andrew Patrick Traumann, doutor em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal do Paraná. O adiamento dos jogos que seriam em 2020, diz ele, entra pra história com igual importância dos cancelamentos de 1916 em Berlim, 1940 em Tóquio (coincidentemente) e 1944 em Londres. O professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba coloca as olimpíadas adiadas de Tóquio como mais relevantes historicamente que os boicotes de EUA e URSS na Guerra Fria, uma vez que os jogos aconteceram mesmo sem a presença deles. Traumann ainda vê a atual suspensão em prateleira mais alta de notabilidade em comparação com os atentados do grupo palestino Setembro Negro, que mataram 11 israelenses na vila olímpica de Munique em 1972. Os assassinatos não são tão lembrados pelo público em geral e fica restrito aos estudos das R. I. sobre o Oriente Médio, defende o professor, enquanto o cancelamento dos Jogos Olímpicos por conta da pandemia do coronavírus transcende essa bolha. O historiador parece discordar do repórter Daniel Castro quando diz que o adiamento é, inclusive, pior para a Rússia, porque retarda o cumprimento da punição.

            Jogos Olímpicos e política internacional sempre estiveram umbilicalmente ligados. Esta relação passou, além dos já citados atentados terroristas, boicotes na Guerra Fria e dos cancelamentos nas Grandes Guerras,  pelo desmembramento da URSS em 1991, quando Letônia, Estônia e Lituânia desfilaram em Barcelona (1992) com o hino do comitê olímpico. Em 2000, o mesmo COI, que abrigou os ex-soviéticos desgarrados, baniu o Afeganistão dos jogos de Sydnei em represália ao regime Talibã. As para-olimpíadas - modalidade de competição para deficientes físicos e amputados - teve sua criação no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, porque havia uma enormidade de feridos pelo conflito. Exemplos da combinação político-esportiva dão uma lista extensa demais para se enumerar. O coronavírus soma a este panorama e, possivelmente, levaremos gerações para entender totalmente o impacto da pandemia nos Jogos Olímpicos e nas relações internacionais. 




*Fernando Yazbek é aluno do segundo período de Relações Internacionais do UNICURITIBA e também cursa Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. Além de integrar a equipe de 2020 do Blog Internacionalize-se, também é responsável pelo Blog Democratiba - que discute os meandros políticos que interferem na vida esportiva do Coritiba Foot Ball Club, seu time do coração. 


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domingo, 29 de março de 2020

Redação Internacional: Como o jornalismo internacional tem visto as ações do Brasil no combate ao coronavírus?




Fernando Yazbek*



Desde que a primeira morte por coronavírus foi registrada no Brasil, no dia 17 de março de 2020 em São Paulo, não se fala em outra coisa. A grande mídia tradicional, ora acusada do oligopólio dos meios de comunicação, viu o Covid-19 monopolizar o que é notícia no país. Há em curso uma cobertura jornalística monotemática nunca antes vista, nem em época de Copa do Mundo, Olimpíadas e eleições. A novela das nove diminuiu de tamanho e o telejornal ganhou mais minutagem. Os classificados e as palavras-cruzadas saíram dos jornais impressos para abrir espaço para mais páginas de saúde, circulação de pessoas, serviços essenciais na quarentena e - infelizmente - obituário. Até os cadernos específicos de economia e política só repercutem os impactos do vírus nessas pautas. 


A cada hora somos inundados com informações de um novo caso num estado, da mais recente morte numa cidade do interior e da última entrevista coletiva das autoridades. Sabemos como a imprensa brasileira vem noticiando a pandemia. Mas como as redações dos outros países enxergam o Brasil neste momento? O que é  manchete nos principais jornais do mundo sobre nós? Analisa-se, abaixo, como as redações de fora repercutiram o Brasil desde o primeiro caso do novo coronavírus reportado no país até o pronunciamento em cadeia nacional do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, na terça-feira 24 de março. 


O americano The New York Times deu, ainda em 26 de fevereiro, que “Brasileiro que visitou Itália é o primeiro paciente do coronavírus na América Latina”. A matéria, mesmo que em alerta, ressalta o grande sistema público de saúde brasileiro. O que mais foi notícia nos Estados Unidos em relação ao Brasil no início da proliferação do vírus pelas Américas foi o contato do secretário de comunicação do governo Bolsonaro, Fábio Wajngarten, infectado pelo coronavírus, ter tido contato direto com o presidente Donald Trump no estado americano da Flórida. Incidente foi visto como constrangedor. Ainda no Times, artigo de opinião critica duramente não só o governo, mas em especial a postura do presidente Jair Messias Bolsonaro, acusando-no de omissão no que seria a “pior crise sanitária do Brasil moderno”. O texto também aponta as falas anti-democráticas e distantes da realidade do chefe da nação.





Muda o país, mas o entendimento sobre Bolsonaro na crise do coronavírus é o mesmo. O alemão Deutsche Welle manchetou que o presidente brasileiro “contraria consenso científico sobre a covid-19”, enquanto o espanhol El País profetizou que “amanhã pode ser tarde demais para deter Bolsonaro”. Latinos e germânicos veem o ex-capitão se aproveitando de uma epidemia para “minar instituições democráticas” com seu “estilo de aprendiz de ditador”




No melhor estilo argentino, o vizinho La Nacion misturou futebol e política para notificar o coronavírus no Brasil. O periódico se valeu de uma postagem no Instagram do lateral-direito da seleção canarinha, Daniel Alves, em que o multicampeão crítica, muito respeitosamente, a postura do presidente. La Nacion enfatiza que Bolsonaro tem “baixado o tom” reiteradas vezes durante esta calamidade.





Em Portugal, o jornal Público repercutiu o isolamento político de Bolsonaro. Ex-aliados de campanha e de ideologia, governadores tomam medidas que vão em rota de colisão com o que manda o governo federal. É o caso de João Dória (PSDB) em São Paulo e Wilson Witzel (PSC) no Rio de Janeiro. Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre (que está com o vírus) respectivamente, também têm se distanciado do presidente, assim como o partidário Ronaldo Caiado (DEM), governador de Goiás, que anunciou rompimento com o Palácio do Planalto. Para o jornal, as atitudes insensatas de Bolsonaro e a disputa politica pela sucessão presidencial em 2022 o afastaram de seus antigos cabos eleitorais.









No dia 19 de março, o Le Monde deu destaque aos protestos que sofreu o presidente pelas janelas das cozinhas Brasil à fora. O panelaço repercutiu principalmente na mídia francesa pela crise diplomática aberta por Bolsonaro com o presidente Emmanuel Macron na metade de 2019, por conta das queimadas na selva amazônica. A briga entre os chefes de estado envolveu também, à época, os filhos de Bolsonaro e - grosseiramente - a primeira dama parisiense.








O cubano Granma foi o único periódico, nacional e internacional, que deu mais atenção ao ex-presidente Lula que a Bolsonaro. O que é razoavelmente esperado, uma vez que se trata do panfleto oficial do partido comunista da ilha. O texto trata especificamente do que hoje pode ser tratado como o maior símbolo de soft power castrista: a medicina. O povo brasileiro será sempre grato - diz o petista na matéria -pela vinda dos médicos cubanos ao Brasil no programa Mais Médicos. Lula fala da emoção em ver cubanos desembargando na Itália no dia 23 de março, país com maior número de mortos na pandemia, e diz se tratar de um gesto “verdadeiramente grande” de solidariedade revolucionária.






O governo brasileiro há tempos não tem uma boa imagem no exterior. Desde a crise das queimadas na Amazônia, passando pelas constantes ameaças à democracia brasileira e à soberania de países como Venezuela e Cuba, a mídia internacional volta os olhos ao Brasil com certa preocupação. A pandemia do Covid-19 não parece ser a exceção para confirmar a regra de que Bolsonaro será criticado pelos veículos midiáticos estrangeiros. E, pelas atitudes desencontradas do presidente, o coronavírus não deixará de ser notícia tão cedo no Brasil.









Referências:









*Fernando Yazbek é aluno do segundo período de Relações Internacionais do UNICURITIBA e também cursa Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. Além de integrar a equipe de 2020 do Blog Internacionalize-se, também é responsável pelo Blog Democratiba - que discute os meandros políticos que interferem na vida esportiva do Coritiba Foot Ball Club, seu time do coração. 

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sábado, 21 de março de 2020

Em Pauta: A história da OMS e o papel da cooperação internacional no combate à doenças




 Por Manuela Paola e Vinicius Canabrava

A saúde foi uma das primeiras áreas a ter cooperação entre Estados. O motivo era mais comercial - uma vez que doenças transbordam fronteiras e afetam os negócios - do que humanitário. Por isso, em 1851, quando houve um surto de cólera pela Europa, foi realizada a Primeira Conferência Sanitária para decidir como controlar a doença e chegar a um acordo sobre as condições de quarentena marítima. Na VII Conferência, que tomou lugar em 1892, entrou em vigor a primeira Convenção Sanitária Internacional (que versou sobre a cólera, lá em 1851) e estabeleceu a quarentena marítima e inspeção médica de todos os navios que passassem pelo Canal de Suez. Após essas determinações, outras duas Conferências aconteceram e determinaram mais convenções sobre a cólera. Ainda, uma conferência realizada em Veneza no ano de 1897 determinou mais uma convenção, dessa vez sobre a prevenção da propagação da peste. Todas as quatro convenções resultaram em uma única Convenção Sanitária Internacional, em 1903. Mesmo assim, não havia uma organização mundial que pudesse versar sobre a saúde.

 Dessa forma, no final do século XIX, quando a febre amarela chegou na América Latina e nos Estados Unidos através do comércio marítimo, Ministros da Saúde de onze países se reuniram para cooperar e acabar com a epidemia. Acontecia, então, em 2 de dezembro de 1902, a Primeira Convenção Sanitária Internacional das Repúblicas Americanas. O encontro deu origem ao Escritório Sanitário Internacional, que se tornaria a Organização Pan-Americana de Saúde, um órgão de extrema importância que, em conjunto com a Organização Mundial da Saúde, foi capaz de erradicar doenças, como a varíola e a poliomielite, além de diminuir significativamente as taxas de incidência de hanseníase, sarampo, tétano neonatal e raiva. A OPAS também foi importante na década de 70, no contexto dos regimes autoritários na América Latina, onde atuou na revisão do ensino médico, na valorização das Ciências Sociais e no desenvolvimento da Medicina Social.

 A criação da Organização Mundial da Saúde foi precedida por dois outros órgãos: o OIHP (escritório internacional de higiene pública) e a Organização de Saúde da Liga das Nações. Era especulado que as duas se tornariam uma só, com o OIHP sendo incorporado na estrutura administrativa da Liga. No entanto, membros do escritório que não faziam parte da Liga vetaram a fusão. Assim, as duas coexistiram na Europa, cooperando mutuamente, juntamente com a Organização Sanitária Pan-Americana, a atual OPAS.

 Com a explosão da Segunda Guerra Mundial, surgiram outros assuntos urgentes e o trabalho com a saúde internacional foi interrompido. Mesmo assim, em abril de 1945, em uma conferência para a criação da ONU, os representantes do Brasil e da China apresentaram o estabelecimento de uma organização mundial de saúde e uma conferência para estruturar sua constituição. Em 1946, líderes se reuniram para elaborar propostas para a Constituição, que foram apresentadas na Conferência no mesmo ano, que redigiu e aprovou a Constituição da Organização Mundial da Saúde. Ela foi assinada por representantes de 51 membros da ONU, além de 10 outros países, em julho de 1946. Foi determinado, também, que até a Constituição da OMS entrar em vigor, uma comissão interina realizaria atividades de instituições já existentes. Além disso, a Constituição prevê que a OMS é uma agência especializada das Nações Unidas e que entraria em vigor quando 26 membros da ONU a ratificassem, que ocorreu em 7 de abril de 1948. Os organismos regionais, como a OPAS, continuam existindo, mas subordinados à OMS.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) começou a operar plenamente em abril de 1948, quando sua carta constitutiva foi implementada. Nela fica estabelecido que saúde é um direito humano básico, envolvendo as condições mentais, físicas e sociais, que deve alcançar todas as populações. Além disso, a Organização estabelece que os governos são responsáveis pela promoção da saúde em seus respectivos Estados.

Atualmente a OMS conta com 194 membros, os mesmos das Nações Unidas que devem entrar em consenso para aprovar novas estruturas e convenções no âmbito sanitário internacional. A estrutura da organização é financiada tanto pelos Estados quanto por empresas, o que pode se tornar um tanto polêmico quando se leva em consideração as grandes indústrias farmacêuticas, que não tem o seu interesse na saúde global.

A OMS trabalha desenvolvendo e distribuindo vacinas e medicamentos, promovendo estudos científicos e controlando doenças. No entanto, como a saúde envolve várias áreas  a OMS coopera com outros organismos, como a Organização Internacional do Trabalho e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.

Já para que os Estados promovam a saúde, a Organização possui alguns instrumentos, como recomendações e declarações. Uma delas é o guia para a redução do consumo de açúcar, na qual a OMS recomenda que os governos implementem políticas públicas que mudem a rotulagem de produtos, controlem a circulação de produtos ricos em açúcares e tenham uma política fiscal mais rigorosa em relação a esses alimentos.

Por fim, mesmo utilizado apenas duas vezes, o acordo constitutivo da OMS prevê a criação de regulamentos obrigatórios. Atualmente os dois acordos são: A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, liderada pelo Brasil, que tem por objetivo proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras consequências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco e o Regulamento Sanitário Internacional, que foca em ajudar a comunidade internacional a prevenir e responder a graves riscos de saúde pública que têm o potencial de atravessar fronteiras e ameaçar pessoas em todo o mundo.

Doenças transcendem fronteiras, como é claro observar com a proliferação do coronavírus e de tantas outras mazelas que passaram pelo planeta. Assim, fica evidente a importância da existência de uma instituição internacional na área da saúde, que permite uma cooperação técnica dos Estados em um assunto de importância imediata.


Referências
https://www.paho.org/bra/images/stories/GCC/portifolio_2015_web_final.pdf?ua=1
http://www.salud.gob.ar/dels/printpdf/167
https://www.asbran.org.br/noticias/guia-da-oms-recomenda-reducao-no-acucar
https://www.who.int/about
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42811/9241591013.pdf;jsessionid=C56AA29AEB492220228A2D6C362D6ADA?sequence=1
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5847:regulamento-sanitario-internacional-rsi&Itemid=812

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sexta-feira, 13 de março de 2020

Podcast Hora do Intervalo: Coronavírus






O Sars-Cov-2 é o mais novo integrante de uma família já conhecida de vírus: os coronavírus. De início, uma preocupação dos chineses - hoje, uma pandemia global.

Não se fala de outra coisa e o Podcast "Hora do Intervalo" organizado pela equipe do Blog Internacionalize-se e do Blog "Unicuritiba Fala Direito" decidiu abordar o tema sob a ótica do Direito e das Relações Internacionais.

Confira, no Spotify do Unicuritiba!




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quarta-feira, 11 de março de 2020

Em pauta: A "bola fora" de Ronaldinho no Paraguai









Por Manuela Paola




            O MERCOSUL é um  bloco econômico fundado com o objetivo de integração regional, promoção da cooperação e do desenvolvimento dos países membros e associados. Dessa forma, diversos acordos são feitos visando manter as boas relações entre as nações. Um exemplo disso é o Acordo sobre Documentos de Viagem dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados, que permite aos cidadãos da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru o trânsito entre as fronteiras sem a necessidade de um passaporte. Dito isso, surge a pergunta: por que Ronaldinho Gaúcho e seu irmão decidiram usar passaportes fraudulentos (autênticos, mas alterados) para entrar no Paraguai?
           
Não é que conseguir a nacionalidade de outro país do MERCOSUL não seja possível. No caso do Paraguai, após uma residência física por 3 anos - permitida, também, pela integração do MERCOSUL - o residente pode aplicar pela naturalização. Os passaportes de Ronaldinho e do irmão continham a informação de que eles eram paraguaios naturalizados, o que demandaria que tivessem passado por este processo. No entanto, não há informação de que Ronaldinho Gaúcho tenha vivido por este período no Paraguai e o Ministério Público informou que não houve pedido de naturalização por parte do ex-atleta.

 O MP paraguaio deteve duas mulheres que supostamente são as verdadeiras titulares dos passaportes. Além dos documentos de viagem, foram encontrados no hotel em que os irmãos estavam hospedados documentos de identificação paraguaios completamente falsos. As investigações estão caminhando para um denominador comum: a empresária Dália Lopez, que já vinha sendo investigada por suspeitas de evasão de divisas, sonegação de impostos e lavagem de dinheiro, além de ser suspeita de ter fornecido os documentos adulterados para os irmãos. O empresário brasileiro Wilmondes Sousa Lira tinha projetos beneficentes em conjunto com Lopez e Ronaldinho Gaúcho; Roberto era quem cuidava de toda parte dos negócios. Para que o ex-atleta pudesse participar tranquilamente dos eventos, sugeriu-se a naturalização de ambos, assim como de Wilmondes. A empresária garantiu que os trâmites estavam em ordem e, na quarta-feira (4), Ronaldinho e Roberto assinaram os passaportes antes de passar pela imigração do Paraguai.

Outra possível explicação para a polêmica é que, desde a sua aposentadoria em 2018, o ex-atleta ingressou na carreira empresarial. Ele é sócio da 5xmais Holding Business e de uma marca de relógios, além de ter lançado uma criptomoeda. É provável que a motivação dos irmãos seja o fato de que os documentos paraguaios possibilitariam a participação em negócios de empresas nacionais que não aconteceriam sem a nacionalidade do país vizinho. Além disso, o Paraguai, por ter acordos comerciais com os Estados Unidos, facilita a expansão de negócios - possibilitando até mesmo a emissão de um tipo de passaporte para investidores -, além de desburocratizar o processo para tirar um visto estadunidense.

Além disto, não é a primeira vez que Ronaldinho e Roberto têm problemas com passaportes. Em 2015, a Justiça do Rio Grande do Sul condenou ambos por dano ambiental. O processo aconteceu por conta de uma construção de trapiche, com plataforma de pesca e atracadouro, na orla do Guaíba. Não havia nenhuma licença ambiental, além da construção estar em uma área de preservação permanente. A Justiça determinou a apreensão dos passaportes dos irmãos para obrigar a família a pagar mais de R$8,5 milhões em indenizações. Ambos foram proibidos de deixar o país e de renovar os documentos. Em 2019, o ex-atleta e seu irmão fizeram um acordo com o Ministério Público para receber os documentos, em troca do pagamento de fiança. As notícias apontam que os documentos foram, de fato, devolvidos ao jogador.

Ronaldinho e Roberto foram detidos na última quarta-feira, 4 de março, no hotel em que estavam hospedados em Assunção. Os irmãos estão presos preventivamente - podendo ficar nesse estado por até 6 meses -, enquanto aguardavam uma decisão judicial sobre prisão domiciliar. O promotor que investiga o caso, Osmar Legal, disse em entrevista à Folha de São Paulo que os dois devem permanecer em solo paraguaio até se descobrir a verdadeira motivação por trás do ato cometido. Mesmo sendo brasileiros, os dois irmãos devem ser julgados pelas autoridades do Paraguai. Neste caso, porém, por serem brasileiros, poderão receber a proteção consular necessária. Isto porque a Convenção de Viena sobre Relações Consulares preconiza que há diversas funções consulares, conforme o artigo 5° da Convenção, sendo algumas delas:

a) proteger, no Estado receptor, os interêsses do Estado que envia e de seus nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional;
e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, do Estado que envia;

O artigo 36 da referida Convenção ainda afirma que “A fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado que envia: (...) b) se o interessado lhes solicitar, as autoridades competentes do Estado receptor deverão, sem tardar, informar à repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um nacional do Estado que envia fôr preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer outra maneira. c) os funcionários consulares terão direito de visitar o nacional do Estado que envia, o qual estiver detido, encarcerado ou preso preventivamente, conversar e corresponder-se com êle, e providenciar sua defesa perante os tribunais. Terão igualmente o direito de visitar qualquer nacional do Estado que envia encarcerado, preso ou detido em sua jurisdição em virtude de execução de uma sentença, todavia, os funcionário consulares deverão abster-se de intervir em favor de um nacional encarcerado, preso ou detido preventivamente, sempre que o interessado a isso se opuser expressamente.

Dentro deste contexto, o Brasil poderá adotar algumas medidas, como enviar um representante para realizar visitas a presídios para monitorar o tratamento recebido pelo craque e acompanhá-lo em audiências visando assegurar o devido processo legal. No entanto, há limites para a atuação das autoridades brasileiras no caso: não é possível interferir no processo judicial nem retirar Ronaldinho da cadeia. É importante frisar que as autoridades brasileiras não podem agir em desacordo com as leis do país, mesmo que sejam diferentes das leis brasileiras.

O Ministério Público paraguaio negou, no dia 10 de março, o pedido de Ronaldinho e seu irmão de transferência para uma prisão domiciliar para responder ao processo. Caso aprovado, os dois ficariam detidos em uma casa no bairro Itá Enramada. De acordo com o juiz Gustavo Amarilla faltaram documentos do imóvel que Ronaldinho queria dar como garantia (fiança). Além disso, ele afirmou que para o G1 que “[...]. Não podemos correr o risco de essa investigação acabar por causa de uma fuga ou de uma saída do Paraguai.” 

Por enquanto, a marcação continua cerrada em cima do  ex-craque da seleção brasileira e os dois irmãos permanecem no Centro de Agrupación Especializada de Assunção, que iniciou, no último dia 09, seu campeonato interno de futebol.


Referências

https://www.correiodopovo.com.br/esportes/ronaldinho-fica-fora-de-torneio-de-futsal-em-cadeia-do-paraguai-1.404082
https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/sob-os-olhares-de-ronaldinho-presidio-no-paraguai-inicia-campeonato-na-segunda-feira.ghtml
 


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