Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Em pauta: Roberto Alvim, Joseph Goebbels, Karl Popper e a intolerância ao intolerante







Por Amanda Delgado Gussão**



No último dia 16 de janeiro, circulou nas redes sociais da Secretaria Especial da Cultura um vídeo institucional para anunciar o Prêmio Nacional das Artes do governo de Jair Bolsonaro. Nele, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, além de usar referências que remetem ao período liderado por Adolf Hitler, parafraseou uma citação do ministro de propaganda do regime nazista, Joseph Goebbels. O vídeo teve grande repercussão, inclusive internacional e, no dia seguinte (17), Roberto Alvim foi exonerado por Bolsonaro, que declarou em nota: “Um pronunciamento infeliz, ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência".

No vídeo de cerca de 4 minutos e meio, a trilha sonora escolhida é obra de Richard Wagner, compositor alemão anti-semita, declarado por Hitler uma inspiração. A composição visual e o vocabulário utilizados por Roberto Alvim remetem àqueles dos discursos de Goebbels. O que realmente causou repúdio e levou à sua exoneração, no entanto, foi a infeliz frase: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo. Ou então não será nada” (Roberto Alvim, ex-secretário oficial da Cultura). A frase imita parte de uma declaração de Goebbels (1933), feita à diretores de teatro alemães para especificar as diretrizes de como esse ramo artístico deveria ser naquela época: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.

Paul Joseph Goebbels foi ministro de propaganda de Adolf Hitler durante o período de 1933 a 1945, sua função foi fundamental para garantir o apoio da população ao Führer dadas suas estratégias de “lavagem cerebral”. Através do controle de todos os meios de comunicação da época e de qualquer aparelho cultural e educativo, Goebbels tinha como objetivo fazer com que Hitler, o salvador nacional, fosse adorado, e que todo o antissemitismo e ódio declarado no regime nazista fosse disfarçado como amor à pátria e nacionalismo.

A exoneração de Roberto Alvim não apenas salienta a gravidade do seu discurso como também invoca questões de liberdade de expressão e tolerância. Deveria, o discurso do ex-secretário, ser tolerado em função de seu direito à liberdade de expressão? Seria a citação à Goebbels apenas uma má escolha de referência? A resposta é não. Simplesmente porque a sua fala traz toda a carga do período e do personagem que a pronunciou originalmente, sendo assim uma frase de citação preocupante que não pode ser aceita como liberdade de expressão. Junto com a frase utilizada por Alvim vem todo seu contexto histórico original o que desrespeita os grupos sociais afetados naquele período - especialmente, a comunidade judaica. Repetí-la livremente como que orgulhoso de sua fonte e não ter consequências, significa tolerar a carga negativa que ela representa e não se importar com seus desdobramentos no momento atual. Afinal, a principal preocupação é que o uso dos mesmos recursos um dia utilizados para o controle social nazista seja aceito como algo normal  e que pode se repetir.

A intolerância ao discurso do ex-secretário especial da Cultura, portanto, é necessária para que a tolerância e os tolerantes continuem existindo, como afirmou Karl Popper (1945): “Tolerância ilimitada leva necessariamente ao desaparecimento da tolerância. [...]  Nós deveríamos portanto reivindicar, no nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.” Aceitar o discurso de Alvim, como o era aquele de Goebbels, é permitir que o que foi tolerado um dia, o volte a ser. Que as conjunturas desumanas do regime nazista passem como normais e honrosas de serem repetidas saudosamente. 

O limite da tolerância com o intolerante, assim, é fundamental para que a própria tolerância siga existindo. Afastar do cargo e responsabilizar aqueles que fazem uso de referências de um dos períodos mais sombrios da história é fundamental para que se entenda que os limites existem, e que o que um dia foi aplaudido, hoje não é mais tolerado, e não voltará a ser.   


POPPER, Karl. Open Society and Its Enemies. Londres: George Routledge & Sons, Ltd., 1945. 755 p.


** Amanda é egressa de Relações Internacionais do UNICURITIBA. Seu trabalho de conclusão de curso abordou as conexões entre o fascismo, a liberdade de expressão e o discurso de ódio na Internet. 


Leia Mais ››

sábado, 8 de junho de 2019

Me indica um filme? - Operação Final






Ricardo Klement, morador de Buenos Aires, vivia com a esposa e seu filho, e saia todos dias trabalhar como qualquer um dos seus vizinhos. Uma coincidência, entretanto, levou o grupo de agentes israelenses a descobrir que aquele homem, na verdade, era Otto Adolf Eichman, o alemão, judeu, que foi significante mentor e operador logístico do holocausto.

A captura foi feita secretamente – já que a Argentina na época tinha diversos nazistas, um pedido de extradição formal tinha grandes chances de ser negado: o filme mostra tudo que foi necessário para tirá-lo do país simulando sua própria vontade.

Israel e Argentina, após o incidente, passaram a ter conflitos, já que o segundo passa a exigir o retorno de Eichman, o que não acontece; ele é julgado em Jerusalém no ano de 1961 e enforcado em 1962.  

Ao longo do filme é possível enxergar nos diálogos, partes da multifacetada realidade do caso: a começar pelo ator que interpreta o nazista, que  é o mesmo a interpretar Gandhi no  filme de 82  (e ganhar o oscar de melhor ator).

É um paradoxo compreender o tamanho da barbárie que pessoas não necessariamente intencionadas ao mal são capazes de cometer, esse é um apontamento de Hannah Arendt, filósofa que esteve no julgamento, sobre o qual produziu sua obra “Eichman em Jerusalém”. Como a escritora aponta, o homem julgado entendia que estava “fazendo apenas o seu trabalho”, entretanto, em política, obediência e apoio são a mesma coisa. O réu foi julgado e condenado sobre seus atos e, enquanto o mundo inteiro assistia, já que  tudo estava sendo televisionado, foram divulgados os horrores do nazismo, sendo importante marco para que nunca o massacre do holocausto seja esquecido.

Operação final é um filme para ser visto: é um daqueles que mostra fatos interessantes, é bem feito, tem bons atores e nos faz refletir sobre quanto o mal ainda pode ser banal, e quanto mal pode haver nos nossos atos sem que percebamos. É um compromisso coletivo fazer com que o holocausto seja memória viva, para que mesmo sob regras imorais, sempre se dê valor, acima de qualquer coisa, à empatia e ao respeito entre todos.
Leia Mais ››

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Me indica um livro? - A Grande Ilusão, de Norman Angell






Por Matheus Cavichiolo Flores*



Reconhecida como uma das principais obras contemporâneas do pensamento das Relações Internacionais, “A Grande Ilusão”, de Norman Angell, é um texto publicado em 1909, abordando duas questões muito atuais para sua época: (a) o diagnóstico e a análise de um caso concreto de eminência de conflito entre duas influentes potências (Inglaterra e Alemanha), que acabaria despontando na Primeira Guerra Mundial, apenas cinco anos mais tarde, em 1914, e (b) a exposição e a revisão dos axiomas considerados fundamentais na relação entre a guerra e a economia, que no momento era abordada como uma relação de afirmação mútua.

Ambas as questões são quase sempre abordadas pelo autor em relação uma à outra, colocando as tensões entre Inglaterra e Alemanha e suas possíveis consequências para ambos os países sempre como um caso concreto da abordagem relativa entre a guerra e a economia.

De acordo com Angell (1909),

Admite-se, de modo geral, que a rivalidade europeia em matéria de armamentos - e particularmente a que reina hoje entre a Inglaterra e a Alemanha - não pode prolongar-se indefinidamente na sua forma atual (ANGELL, 1909, p. 3).

Evidencia-se, desse modo, a impossibilidade de haver um ponto de equilíbrio estático e que as tensões automaticamente teriam de participar de uma dinâmica de progressão ou de retroação do conflito, visto que o constante aumento no poder militar de cada um dos polos inferia um dilema de segurança entre ambos os Estados.

          Entretanto, Angell (1909) passa longe de ter uma perspectiva ofensiva sobre o caso, sendo um dos mais técnicos idealistas de sua geração, o que passa a ser evidenciado a partir do capítulo 2 de sua obra, logo após terminar as exposições gerais sobre o corpo já desenvolvido da questão. De forma muito interessante, passa a trazer à luz uma concepção desconhecida e muito pouco intuitiva sobre a relação guerra-economia, demonstrando no capítulo 3 a divergência entre o crescimento econômico e o poder militar, que faz o leitor concluir que não há, de fato, nenhuma relação positiva entre ambos, podendo haver, inclusive, uma relação indiferente e, até mesmo, prejudicial, na grande maioria das situações.

Em contrapartida, também mantém-se cético em relação ao pensamento de seus colegas contemporâneos da escola idealista no que diz respeito a uma abordagem pacifista do eminente conflito, levando em conta que seu objeto de análise era uma abordagem da relação entre a economia e a guerra, afirmando que

O defensor da paz invoca o "altruísmo" das relações internacionais e, ao fazê-lo, admite de fato que o êxito na guerra favorece os interesses do vencedor, mesmo quando imorais (ANGELL, 1909, p. 6-7).

Essa posição crítica dá-se, pois, para Angell (1909), como é exposto posteriormente, no capítulo 3, não há nenhuma vantagem no conflito bélico, seja de que forma for, estando os axiomas vigentes quase que hegemonicamente em sua época da relação que lhe é objeto completamente fundados no que ele vem a denunciar como “o caráter de uma ilusão de ótica” (ANGELL, 1909, p. 22). Não havendo fundamento prático e verdadeiro para o benefício econômico vindo da guerra, logo não haveria como concordar com os pacifistas que compartilhavam com ele o espaço no campo teórico da escola de pensamento.

Desse modo, Angell (1909) passa a maior parte do capítulo 1 expondo a composição dividida do corpo doutrinário da questão, majoritariamente composto pelo pensamento ofensivo e minoritariamente pelo pensamento pacifista, sendo esse segundo grupo descrito, com muita propriedade, pelo autor, como “uma minoria de pessoas, consideradas nos dois países como sonhadoras e doutrinárias” (ANGELL, 1909, p. 3).

Mencionando, desse modo, pensadores participantes do mesmo contexto, como o historiador inglês Frederick Harrison, que o autor anunciou como sendo “conhecido como o filósofo protagonista do pacifismo” (ANGELL, 1909, p. 5), e o “liberal” Barão Karl von Stegel (ANGELL, 1909, p. 14), Angell (1909) traz extensos exemplos de como a formatação do pensamento da época estava completamente voltado à crença de que a guerra, em si mesma, era um fator inalterável da natureza humana e da importância do armamento ofensivo para o bom desenvolvimento da economia em uma nação próspera e estável, independentemente da perspectiva particular de cada pensador sobre se isso era o correto ou não, tendo alguns pacifistas, inclusive, afirmado que “as leis naturais contradizem, neste ponto, a lei moral” (ANGELL, 1909, p. 6).

Posteriormente, no terceiro capítulo, o autor constrói uma abordagem revisionista dos axiomas considerados quase que hegemônicos sobre o tema, deixando evidente sua perspectiva de que a guerra é essencialmente um atraso para o desenvolvimento na dimensão econômica, independentemente da situação. Dessa forma, são explicitados sete novos axiomas para a análise dessa relação, fundamentados numa comutatividade negativa entre os dois agentes, buscando demonstrar que, em quaisquer sejam casos, a economia de ambos os Estados é afetada prejudicialmente pelo conflito bélico (ANGELL, 1909, p. 22-25).

Entretanto, o que acaba por ficar evidente na obra é que seu autor não passa de um produto de um espírito cultural antecipado em sua época. Sua cosmovisão, profundamente enraizada na análise dos níveis de prosperidade econômica, acaba por descartar a importância da guerra como motor dialético da História, o grau máximo dos conflitos culturais e estruturais do Sistema Internacional, que precisam constantemente evoluir em seu fluxo de criação, destruição e reestruturação.

De acordo com a perspectiva que pode ser pinçada desde as páginas dos escritos de Thomas Carlyle (1841) sobre as relações entre os heróis e o próprio progresso histórico, valendo ressaltar a obra “On Heroes, Hero Worship and the Heroic in History” (CARLYLE, 1841) pode-se afirmar que a História pode ser descrita com base na análise dos papéis dos heróis em suas próprias histórias particulares em relação ao todo do contexto ordenado do momento histórico, como se o próprio motor da História fosse o heroísmo de alguns poucos espíritos elevados.

Ademais, afirma Hegel (1820) que

352 - A verdade e o destino das ideias concretas dos espíritos dos povos residem na ideia concreta que é a universalidade absoluta. Esse é o Espírito do mundo. Em volta do seu trono, os povos são os agentes da sua realização, testemunhas e ornamentos do seu esplendor. Como espírito, é ele o movimento da atividade em que a si mesmo se conhece absolutamente, se liberta da forma da natureza imediata, se reintegra em si mesmo, e, deste modo, os princípios das encarnações desta consciência de si no decurso da sua libertação, que são impérios históricos, são quatro. (HEGEL, 1820, p. 312)

Essa concepção de que o Mundo é uma imensa composição animada pelo fluxo constante de um espírito próprio, expresso como uma consciência dinâmica, corrobora diretamente com a visão carlyleana de que o corpo e a estrutura da História podem ser explicados pela vida dos próprios heróis que integram esse processo dialético. Pode-se ver esse pensamento expresso no momento em que Hegel encarnou em Napoleão o chamado “Espírito do Mundo”: “Eu vi o Imperador, essa alma (espírito) do mundo, atravessar a cavalo as ruas da cidade (...) Sentado sobre um cavalo, estende-se sobre o mundo e o domina” (apud NÓBREGA, 2005, p.8).

Naturalmente, de modo denominável “progressista” e “avançado” para alguns, essa perspectiva seria essencialmente “reacionária” ou “retrógrada”, mas os fatos existem objetivamente a certo grau, e as características ontológicas que compõem a realidade humana, tanto como sua natureza quanto como sua própria existência, são objetivas. Seguindo nessa linha, torna-se evidente que a importância do heroísmo é fundamental para exaltação e completude do Homem enquanto ente ontologicamente reafirmado e para toda a construção histórica, visto que todo o processo civilizacional é resultado dessa reafirmação para a constituição de um imaginário cultural e coletivo.

Tanto o heroísmo carlyleano quanto o heroísmo napoleônico de Hegel só podem ser alcançados por meio do conflito, cuja expressão máxima é, de fato, a guerra. Desse modo, torna-se claro que parte da existência humana, em uma de suas formas mais elevadas, necessita da guerra.

De forma clara Angell (1909), cujos sete axiomas explicitaram magistralmente as profundas divergências entre prosperidade econômica e a progressão de conflitos bélicos, acaba por focar-se estritamente no plano individual dos Homens, tentando minimizar a existência da dor e maximizando o avanço da prosperidade. Entretanto, essa tendência de unidimensionalização normativa da História acaba por não compreender de forma convergente o processo de construção civilizacional em seu âmago, gerando, desse modo, uma abordagem materialista e desconexa da própria realidade dinâmica e transcendental.

Em conclusão, sua obra torna-se incompleta no que diz respeito a um diagnóstico completo da circunstância por (a) não compreender de forma profunda a importância da guerra para própria dinâmica do progresso histórico, (b) não compreender a função do conflito enquanto forma de reafirmação ontológica do Homem na História e (c) não compreender que o caso concreto, em si mesmo, não era resumível apenas a uma análise de dimensão econômica ou estrutural, no que diz respeito às motivações da guerra, mas também participante do determinismo próprio da História enquanto espírito do mundo. Sem contribuir para esses três setores da análise, essenciais para a compreensão profunda do tema, sua análise torna-se estéril ou, no mínimo, incompleta para a visão do panorama verdadeiro que compõem a estrutura das próprias relações internacionais.


Fontes:
ANGELL, N. A Grande Ilusão, 1909.
HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito, 1820.
CARLYLE, T. On Heroes, Hero Worship and the Heroic in History, 1841.

*Matheus Cavichiolo Flores é acadêmico do terceiro período de Relações Internacionais. A leitura do livro "A Grande Ilusão" foi uma sugestão da Professora Jannifer Zarpelon, que ministra a disciplina de Teoria das Relações Internacionais no UNICURITIBA.
 



Leia Mais ››