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segunda-feira, 15 de março de 2021

Médicos peregrinos, monges guerreiros, defensores humanitários e a trajetória da Ordem de Malta nas Relações Internacionais

 


Por Luiz Otávio Cruz de Alcântara Pereira*

    Os conceitos que os estudiosos da política internacional criam e empregam para explicá-la têm muitas vezes uma pretensão universalista. Estudamos que originalmente só se pensava nos Estados como sujeitos internacionais, como postulava a ótica realista, e que só posteriormente foram surgindo novas instituições no cenário mundial, que foram assumindo importância conforme as relações entre os povos ficavam mais complexas e conectadas. Essa progressão está naturalmente correta em termos gerais e é uma excelente maneira de explicar como as Relações Internacionais tomaram a forma que têm atualmente, mas há mais nessa história do que isso. Por mais abrangentes e coerentes que as teorias e acerca da evolução da comunidade internacional sejam, há casos que fogem do padrão. Exceções que, cobertas de história e de significado, acrescentam riqueza ao estudo das RIs, mostrando que o mundo sempre é mais curioso e surpreendente do que nossas teorias possam nos levar a crer. 

                          titleFlags & Emblems 
Bandeira da Ordem de Malta e brasão de seus trabalhos humanitários

    Como exemplo de “anomalia” entre os sujeitos internacionais, vejamos o caso da Soberana Ordem Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta (felizmente abreviada para Ordem de Malta) que por seus quase 1000 anos de história e participação proeminente em muitos eventos importantes da Europa, é até hoje considerada uma entidade respeitável e detentora de um papel sui generis na comunidade internacional. 
    Sua origem remonta a cerca de 1048, quando comerciantes italianos apoiados pela Igreja obtiveram autorização do califa do Egito para construir um templo e hospital para peregrinos em Jerusalém. Com a chegada das Cruzadas, a Ordem de São João assumiu um caráter militar, auxiliando o esforço de guerra dos cristãos com seus monges-cavaleiros, sem abandonar seus deveres médicos e de auxílio aos doentes e viajantes à Terra Santa, ganhando assim a alcunha de Cavaleiros Hospitalários. Os Hospitalários participaram de muitas batalhas cruciais nas Cruzadas, combatendo inclusive o famoso sultão aiúbida do Egito, Saladino, ao lado dos guerreiros do Reino de Jerusalém e outra ordem monástica, os Cavaleiros Templários, com quem os Hospitalários mantinham uma relação alternada de cooperação e rivalidade dentro dos domínios cristãos no Oriente Médio. 

            Vatican celebrates Knights of Malta's 900 years - Stripes     Pin on Middle Ages 


As atuais vestes da ordem e a representação de um antigo cavaleiro hospitalário de armadura 

    Após a perda definitiva da Terra Santa em 1290, A Ordem de São João transferiu-se primeiro para o Chipre e depois para Rodes, perdendo gradativamente seu caráter cruzado e assumindo funções administrativas e políticas como uma entidade soberana da época. Governaram Rodes até 1523, quando foram expulsos pelo sultão otomano Suleiman, o Magnífico, partindo então para Malta, que lhe foi conferida pelo papa e pelo imperador romano-germânico da época. Após séculos na ilha, Napoleão Bonaparte expulsou a ordem durante sua campanha no Egito, sem nenhuma oposição por parte dos cavaleiros devido à proibição de combater outros cristãos. Finalmente, a Ordem foi transferida para Roma, onde mantém sua sede até os dias atuais. 
    Foi então que a Ordem retornou à sua missão original de atender e amparar os doentes e começou a ampliar suas operações para hoje atuar em mais de 120 países (incluindo nações do Oriente Médio, antigos alvos dos cruzados), fundando e administrando hospitais, amparando refugiados e vítimas de desastres naturais e provendo assistência social para necessitados de todas as nacionalidades e religiões. 

https://www.orderofmalta.int/wp-content/uploads/2020/06/c54d5ace-4de1-4a5d-ad8f-2b7931d0a8c6-800x470.jpg Training exercise with Order of Malta. - Killarney Cardiac Response Unit 
Um médico a serviço da Ordem realizando testes de Covid-19 no Líbano e uma ambulância da Ordem na Irlanda

    Estabelecida a história e valor humanitário da atual Ordem de Malta, resta a pergunta: por que ela é considerada um ator internacional independente, até mesmo, um sujeito de Direito Internacional? A resposta se relaciona com seu histórico como entidade soberana detentora de um território e sua relação dicotômica de autonomia e dependência da Igreja Católica. Como visto, a Ordem de Malta possui séculos de história, sendo que por grande parte deles foi considerada um ente político soberano por seus pares, sejam cristãos ou islâmicos. Governar Rodes e Malta e estabelecer uma estrutura robusta de governo nessas ilhas tornava inquestionável a autoridade e independência da Ordem – o que foi posto em evidência nas ocasiões em que tal independência foi violada, como na ocupação francesa, e posteriormente britânica, da ilha de Malta, que gerou um incidente diplomático resolvido somente após o Congresso de Viena. 
    Já em relação à Igreja, o óbvio caráter religioso da Ordem e seus votos monásticos a incluem entre todas as outras ordens eclesiásticas e garantem a ela todo o histórico prestígio que a Igreja Católica possuía, mas o diferencial da Ordem de Malta é que essas características não trouxeram consigo uma clara subordinação à Roma, que passou a vê-la como uma organização integrada ao poderio católico, mas autônoma em sua manutenção, como uma ramificação única da Igreja em si. Mesmo assim, coube à Santa Sé confirmar, em 1953, a completa autonomia da Ordem de Malta, em decisão judicial do Tribunal Cardinalício, garantindo aos cavaleiros a posição de um ente jurídico dentro do sistema internacional. 
    A Ordem, assim, comporta-se como um Estado e é reconhecida como tal por seus pares e demais instituições internacionais, mesmo não possuindo mais um território independente. É um membro-observador das Nações Unidas e pronuncia-se com frequência em seus fóruns sobre direitos humanos e tópicos médicos, inclusive participando ativamente de campanhas de auxílio contra a pandemia de Covid-19. Possui passaportes – fornecidos a cerca de 500 indivíduos a serviço da Ordem por todo o mundo – embaixadas e representações diplomáticas em mais de 100 países. Possui governo, moeda, hino e símbolos “nacionais” próprios; todas as regalias próprias de um país, sem um povo ou um território independente. 
                  Pope Francis Received the Grand Master of the Sovereign Order of Malta in  Audience - Order of Malta 
 O Grão-Mestre da Ordem encontra o Papa Francisco em uma visita diplomática em Roma

    Em conclusão, a Ordem de Malta conseguiu seu espaço no cenário internacional não por seu poder militar, capacidade econômica ou projeção política (permanecendo em grande parte desconhecida) mas por sua singular histórica e proeminência no campo humanitário dos dias atuais, transcendendo seu papel como instituição puramente religiosa e abandonando suas antigas inclinações bélicas para servir à paz e a todos os credos do mundo. O estudo de seu caso como ator internacional não apenas serve de curiosidade histórica ou por seu papel “anômalo” dentro de nossas teorias, mas também para nos mostrar que não importa o quão complexo e rico achemos que o mundo seja, ele sempre tem algo mais a oferecer – uma exceção à regra, um caso obscuro que serve para saciar nossas curiosidades e, com sorte, nos impulsionar a querer descobrir ainda mais sobre o mundo em que vivemos e que sempre será maior que todas as nossas concepções.

*Luiz Otávio Cruz de Alcântara Pereira é aluno de Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e aluno de Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR.

Referências

1048 to the Present Day. ORDER OF MALTA. Acesso em 13 de março de 2021. Disponível em <https://www.orderofmalta.int/history/1048-to-the-present/>.

FRALE, Barbara, ECO, Umberto. (2011). The Templars: The Secret History Revealed. Arcade. History. DIPLOMATIE HUMANITAIRE. Acesso em 13 de março de 2021. Disponível em <https://diplomatie-humanitaire.org/en/the-order-of-malta/ >.

PAPANTI-PELLETIER, Paolo. O Ordenamento Jurídico da Ordem Soberana Militar de Malta na Idade Moderna. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2007 Disponível em <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67749>.

This is the World’s Most Exclusive Passport and Only 500 People Have It. INDEPENDENT. Acesso em 13 de março de 2021. Disponível em <https://www.independent.co.uk/life-style/passports-worlds-most-exclusive-sovereign-order-malta-catholics-travel-borders-a7787431.html>.

The Christians helping Bethlehem shepherd families give birth safely. BBC. Acesso em 13 de março de 2021. Disponível em <https://www.bbc.com/news/stories-50856272>.


  






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sábado, 26 de setembro de 2020

Especial: Dia do Internacionalista - para comemorar o profissional de Relações Internacionais

 


    Apesar dos estudos de Relações Internacionais serem recentes, sua prática é muito mais antiga do que se imagina. A diplomacia entre países, com objetivo de representar o interesse de um Estado perante outro governo, acontece desde que as viagens transnacionais tornaram-se possíveis. Ao longo dos anos, tornou-se necessário estudar de que forma essas negociações eram conduzidas, para se ter um entendimento completo sobre as ações desses profissionais. No entanto, o que se estuda em um curso de Relações Internacionais não pode ser resumido apenas à diplomacia. A formação de um internacionalista vai muito além: Direitos Humanos, empresas transnacionais e economia são algumas das muitas áreas que o curso de Relações Internacionais prepara seu aluno para ingressar.

    O significado do Dia do Internacionalista é a celebração de uma profissão que merece ser valorizada em cada campo de sua atuação. Por sua destreza em resolver conflitos, dos menores aos maiores; por seu conhecimento em um gama extensa sobre diversos assuntos relacionados aos mais variados países do mundo; pela habilidade daqueles que decidiram passar adiante seus aprendizados; por, a todo momento, ter a capacidade de estar atualizado com as notícias internacionais. Esse dia é para aqueles que sabem disso: ser internacionalista, além de uma profissão, é uma escolha de ver o mundo em sua forma pura, com todos os seus defeitos e qualidades.

    O Internacionalize-se conversou com a recém-graduada do curso Brenda Kauane. Em resposta à nossa pergunta Como o curso de RI, os professores e os colegas te ajudaram na tua formação de internacionalista? Além das matérias, o que de mais importante você aprendeu nessa jornada?, a Brenda contou que Foram essenciais, criei laços com professores que com certeza vou levar para o resto da vida. Além dos os ensinamentos em sala de aula, me deram ensinamentos para a vida, se tornaram meus amigos. Os colegas me fizeram ter uma visão estratégica, olhar as coisas com cuidado e me ajudaram a me tornar a internacionalista que sou hoje. A jornada na faculdade vai muito além das matérias. São os debates feitos fora de sala de aula, são conversas nos corredores, são as experiências extra curriculares. Eu fui uma pessoa muito ativa na faculdade, participei de iniciações científicas, eventos externos, grupos de competição, simulações, centro acadêmico, pois isso faz parte da formação. São experiências que nos fazem sair da zona de conforto e nos fazem crescer, a ter experiência e ter o contato com as práticas das relações internacionais. Então, digo que o mais importante que aprendi foi a participar, sair da zona de conforto e a lidar com coisas desafiadoras.

    Como já mencionamos, são diversas as áreas de estudo dentro do mundo de Relações Internacionais. E de fato, talvez nenhum outro curso ofereça uma visão multidisciplinar, que vai desde Ciências Humanas e Sociais, até Ciências Exatas. Esta visão multidisciplinar reflete diretamente nas áreas de atuação de um internacionalista. Diferentemente do que geralmente se pensa, os egressos de Relações Internacionais não são somente diplomatas e operadores de comércio exterior. O profissional internacionalista pode atuar realizando consultorias para implementação de internacionalizações ou relacionada à assuntos internacionais, em setores privados e públicos; atuar na área administrativa de empresas; participar como árbitro ou mediador de conciliações internacionais; atuar em Organizações Não Governamentais, Organizações Internacionais e Multinacionais, em diversas funções; trabalhar como trader; ingressar no mundo de Relações Institucionais e muitas outras funções. Com tamanho número de possibilidades, o profissional de R.I. tem papel de desbravador também no mundo das profissões.

    Perguntamos para duas alunas, Mariana Camargo e Laura Marrie Almeida, do último período do curso, quais são suas pretensões futuras, e o porquê de terem feito sua escolha. Para a aluna Mariana Camargo: "Entrei no curso de RI com 17 anos, apaixonada pela ideia de estudar o sistema internacional, os Estados, as Organizações Internacionais, as ONGs, e assim por diante. Com o desenrolar do curso, expandi cada vez mais meus conhecimentos, valores e perspectivas, nunca me contentando com pouco. Fiz trabalho voluntário no maior movimento de liderança jovem do mundo, participei de grupos de iniciação científica oferecidos pela instituição, tive a oportunidade de fazer um semestre do curso no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, participei da mostra de iniciação científica do 7o Encontro da Academia Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), trabalhei com comércio exterior e, atualmente, ocupo o cargo de diretora de assuntos acadêmicos do Centro Acadêmico de Relações Internacionais Paula Bonomini (CARI). Com todas essas experiências e podendo contar com professores incríveis, surgiu o sonho de seguir carreira acadêmica. Apesar de não serem tempos fáceis para ser (ou se tornar) internacionalista, a ideia de seguir pesquisando e aprendendo fazem meus olhos brilharem. Hoje, com 21 anos, sigo apaixonada por tudo o que o curso e a carreira englobam e representam. Tenho certeza de que escolhi a carreira certa a ser seguida."

    A aluna Laura Marrie respondeu "Quando eu entrei no curso, eu não sabia muito bem o que esperar, mas desejava me envolver com o terceiro setor ou trabalhar com resolução de conflitos. É claro que a minha visão sobre as RIs era bem limitada, mas com o passar do curso isso mudou, e com todas as coisas que professores e colegas me ensinaram, tenho entendido mais sobre o campo e sobre as possibilidades que me aguardam após a graduação.
Durante o período da faculdade tive a oportunidade de participar de várias atividades extracurriculares. Participei da Iniciação científica do prof. Carlos Magno sobre a América Latina, assim como a Iniciação da prof. Michele Hastreiter sobre a nova lei de migração e também da Iniciação da prof. Jeniffer Zarpelon sobre gênero - cada uma contribui muito para o meu crescimento como aluna, e também como profissional. Ademais, pude trabalhar como voluntária na ONG Endeleza, onde conheci um pouco mais sobre a rotina de uma organização não-governamental, além de atuar como estagiária na área de Comércio Exterior. Hoje faço parte da Diretoria de Educação do CARI Paula Bonomini e também da equipe do Blog Internacionalize-se, participando também do Projeto do Laboratório de Relações Internacionais sobre as Relações Internacionais e o novo coronavírus da UNESP Franca. Com o fim da faculdade, todas as opções de carreira parecem plausíveis e adequadas, mas a ideia de continuar estudando e me aprofundando nas áreas de Segurança e Direitos Humanos, que me chama mais atenção. Por isso pretendo tentar uma bolsa de mestrado no exterior no próximo ano, mas seja lá o que o futuro reserve, quero continuar me dedicando para que os temas de RIs estejam sempre norteando meu trabalho e estudos."

    Com o depoimento de ambas alunas, e de tudo que se extrai do curso, vislumbramos que as profissões exercidas por um internacionalista, na verdade, cumprem a função de fazê-lo exercer seu papel. Um internacionalista deve, acima de tudo, ser sensível aos problemas do mundo, utilizando suas habilidades para melhor compreendê-los e a complexidade de temas intrínsecos a eles. Um internacionalista é aquele que tenta empregar seus conhecimentos em prol de causas latentes à humanidade. Acima de tudo, é aquele que tenta transformar o mundo para melhor.

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segunda-feira, 6 de julho de 2020

Entrevista com Gerd Wenzel: as relações entre Brasil e Alemanha


           “A imagem do Brasil na Alemanha nunca esteve tão desgastada como agora”, confessou o jornalista alemão, Gerd Wenzel, ao Blog Internacionalize-se. Nascido em Berlim em plena Segunda Guerra Mundial, em 1943, Wenzel chegou ao Brasil em 1955 junto de sua mãe viúva. No derradeiro ano do regime nazista, Adolf Hitler ordenou o alistamento ao exército de idosos e de adolescentes. À época com 50 anos, o pai de Gerd, Herbert Wenzel, fora obrigado a ir à trincheira contra as tropas soviéticas que invadiam a capital alemã. Abandonando o fronte, Herbert se escondeu no porão da casa até o final da guerra. 
            Já maior de idade, Gerd decidiu estudar para se tornar pastor na Primeira Igreja Presbiteriana do Brasil. Em meio à Ditadura Militar, o Pastor Wenzel foi preso três vezes por implementar o método de alfabetização de Paulo Freire. Liberado da subversão pelo Departamento de Ordem e Política Social, largou a teologia e foi trabalhar para multinacionais alemãs em solo brasileiro. 
               Gerd Wenzel é o pioneiro do futebol alemão no Brasil. Era jornalista esportivo na TV Cultura de São Paulo quando pela primeira vez a Bundesliga foi transmitida aos brasileiros, em 1991. É comentarista dos canais ESPN desde 2002 e tem uma coluna semanal na Deutsche Welle, emissora internacional da Alemanha. Wenzel é unanimidade no mundo futebolístico como o maior especialista do fußball e tem larga experiência com o autoritarismo.

             Gentilmente, o berlinense se dispôs a comentar, para o Blog, questões caras às relações entre Brasil e Alemanha, pandemia do novo coronavírus e, obviamente, futebol. O jornalista falou sobre as repetidas referências ao nazismo do governo Bolsonaro, os atritos diplomáticos teuto-brasileiros e a imagem de Brasília na imprensa europeia. Confira, a seguir, a entrevista na íntegra. 
 
(Blog Internacionalize-se) O governo Bolsonaro é recheado de referências ao nazismo alemão. Desde declarações explícitas como o discurso do ex-secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, parafraseando Joseph Goebbels, em estética claramente nazista até frases homólogas aos dos portões do campo de Auschwitz em vídeo da Secretaria de Comunicação do executivo. O chanceler Ernesto Araújo comparou as medidas de isolamento social no combate ao coronavírus com o holocausto do Terceiro Reich e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, assimilou operações da Polícia Federal com a Noite dos Cristais. Por que, na opinião do senhor, há esta exaustiva correlação com a Alemanha Nazista nas narrativas do governo brasileiro?
(G. Wenzel) “Uma frase atribuída a Leonel Brizola cai como uma luva como resposta: ‘Se tem rabo de jacaré, boca de jacaré, pé de jacaré, olho de jacaré, corpo de jacaré e cabeça de jacaré, como é que não é jacaré?’. Há esta exaustiva correlação com a Alemanha Nazista porque membros desse governo se identificam com o ideário nazista, especialmente no que se refere à Cultura, à Educação e, agora, também na área da Saúde Pública. Podemos testemunhar diariamente a tentativa contínua de destruição da democracia pelo governo através do desrespeito à Constituição, ameaças ditatoriais, cerceamento de liberdade de imprensa, ataque às minorias políticas e sociais e contínua retroalimentação da existência de inimigos imaginários.”

(Blog Internacionalize-se) A Embaixada Alemã no Brasil já reiteradas vezes condenou a banalização do nazismo e o classificou como um movimento de extrema-direita, contrariando o bolsonarismo. Este tema é suficiente para haver um desgaste nas relações entre Berlim e Brasília?
(G. Wenzel) “As relações bilaterais entre Brasil e Alemanha a nível político estão de quarentena. Em Berlim, acompanha-se à distância e com cautela o desenvolvimento dos acontecimentos políticos no Brasil. A diplomacia alemã se pauta por relações civilizadas entre as nações e espera que, mais cedo ou mais tarde, o Brasil se alinhe novamente entre os países que valorizam a Democracia e lutam pela implementação dos seus valores, restabelecendo dessa forma um diálogo frutífero para ambos.”

(Blog Internacionalize-se) Acompanhando a mídia internacional, percebe-se que a Deutsche Welle, assim como o inglês The Guardian, tem se posicionado contundentemente crítica às políticas sanitárias do governo brasileiro, tido como autoritário e ineficiente. Como está a imagem brasileira na Alemanha? 
(G. Wenzel) “A imagem brasileira nunca esteve tão desgastada na Alemanha como agora. Praticamente todo dia algum órgão de imprensa local – e não apenas a Deutsche Welle – publica artigos sobre o Brasil, seja sobre a incompetente gestão, em todos os níveis governamentais, da crise provocada pela covid-19, sobre as manifestações esdrúxulas dos membros do governo ou do próprio presidente da República.”

(Blog Internacionalize-se) A Bundesliga retomou as atividades na metade de maio, com estádios vazios e uma porção de adaptações em meio à pandemia. O senhor, maior conhecedor do futebol alemão no Brasil, se mostrou à época preocupado com o retorno das partidas, em que pese a estabilidade alemã na contenção do espalhamento do vírus. O Brasil ruma à liderança no triste ranking de contágio e de mortes flexibilizando a quarentena. Mesmo assim, presidentes de Flamengo e Vasco reafirmam desejo de voltar com os campeonatos. Com quais expectativas o senhor enxerga a retomada do futebol no país?
(G. Wenzel) “É de uma irresponsabilidade atroz. Na Alemanha, as medidas de isolamento social e distanciamento físico foram implementados rigorosamente já em meados de março e estão trazendo seus resultados agora. Basta analisar as estatísticas. No Brasil, as medidas de isolamento e distanciamento, além de não terem sido implementadas corretamente, foram sabotadas pelo próprio governo federal causando desorientação social do cidadão comum que, consequentemente, não se sentiu compelido a seguir as recomendações das Secretarias Estaduais ou Municipais da Saúde que recomendavam o isolamento. O resultado dessa balbúrdia é que a crise da covid-19 ainda não chegou ao seu ápice e se prolongará por mais alguns meses. Nesse cenário, ao contrário do que acontece na Alemanha, onde a epidemia está sob controle, considero inviável a retomada do futebol sob qualquer circunstância.”

            Aos 77 anos, Wenzel parece reviver os sintomas que viu acabar na infância e reflorescer na juventude. O Brasil vai se desfazendo de sua imagem alegre e pacífica nos olhos do mundo e a substituindo por uma truculência sem propósito. É alarmante que alguém que viveu o declínio nazista, a ocupação soviética, a divisão alemã e a prisão nos anos de chumbo enxerque no abacaxi brasileiro traços de jacaré. 


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terça-feira, 19 de maio de 2020

Por Onde Anda: Andreia Barcellos, consultora no Banco Interamericano de Desenvolvimento




Nome Completo: Andreia C. Barcellos

Ano de ingresso no curso de Relações Internacionais:  2008

Ano de conclusão do curso de Relações Internacionais: 2011

Ocupação atual:  Consultora no Banco Interamericano de Desenvolvimento

Blog Internacionalize-se: Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional.
Andreia: Ao terminar a graduação, realizei um voluntariado no Egito e após, ingressei na American University School of International Service para um mestrado em Paz e Resolução de Conflito. Durante o mestrado, participei de um projeto com imigrantes Africanos em Israel, e passei um período no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) na Malásia. Após concluir o Mestrado, continuei nos Estados Unidos e estagiei na Organização dos Estados Americanos (OEA) e trabalhei para uma pequena ONG prestando auxílio humanitário para refugiados Sírios. Depois realizei trabalhos “em campo”, primeiro em uma ONG no interior do Equador prestando assistência médica para comunidades em situação de vulnerabilidade, e posteriormente para a prefeitura de minha cidade (Medianeira) onde desenvolvi um projeto para Imigrantes Haitianos. Durante esse período, iniciei algumas consultorias para a OEA, o que me permitiram trabalhar em diversos países do continente, e posteriormente retornar a Washington ainda trabalhando na OEA. Depois de um período, iniciei um novo trabalho no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Blog Internacionalize-se: Você fez mestrado em Washington, o que te levou a buscar um aprofundamento de conhecimentos em outro país? Pode nos contar um pouco mais sobre a área escolhida? 
Andreia: Fazer um mestrado é muito mais que aulas e escolher um tópico de seu interesse, temos que considerar o que vem depois, seus objetivos e como esse mestrado nos ajudará a chegar lá. Ou seja, que tipo de técnica, conhecimento e especializações você irá tirar do curso. Pensando nisso eu resolvi olhar as opções fora do Brasil. Escolhi vir para os Estados Unidos pois, no geral, os Mestrados adotam um viés menos acadêmico e mais focado em desenvolver capacidades necessárias para trabalhar em áreas específicas. Escolhi Washington porque é importante estudar onde queremos trabalhar, e Washington é cercado de ONGs, Think Tanks e Organizações internacionais. A cidade oferta inúmeros eventos, workshops, e possibilidades de você explorar diversas áreas e conhecer pessoas de diferentes lugares, e isso agrega muito conhecimento durante processo educacional. Finalmente, escolhi a American University pelo curso em Paz e Resolução de Conflito, que me aperfeiçoou em técnicas de mediação e negociação, pelo seu grande reconhecimento nos Estados Unidos como uma das melhores faculdades na área, e pela flexibilidade em unir o mundo acadêmico com o mercado de trabalho. 

Blog Internacionalize-se: Vimos que você atuou em algumas Organizações Internacionais, pode nos dizer como você começou neste meio e porque? 
Andreia: Comecei a atuar nessa área já durante o mestrado, quando durante as férias de “verão” fui desenvolver um projeto no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) na Malásia. Durante esses meses, recebi uma oferta para permanecer e continuei na Malásia por mais 5 meses. Quando retornei a Washington entrei para uma equipe de alunos escolhidos pelo BID para desenvolver uma analise que serviria de base para um de seus informes. Essa “consultoria” acabou também se tornando a base do meu projeto de conclusão de curso, que apresentei na Universidade e também para o BID. Depois fiz uma estagio na OEA, que posteriormente levou a uma consultoria com a Organização, durante a qual fui para variados países e participei de diversas missões ao redor do continente, até retornar a Washington. Esse foi mais ou menos a trajetória, mas também trabalhei em pequenas ONGs e para o governo. É muito válido ter uma variedade de experiências profissionais para saber como navegar entre as diversas opções que temos como internacionalistas. 

Eu retornei para os Organismos Internacionais pois acredito no poder dessas organizações em apoiar países e pessoas, foi o que me fez procurar essas oportunidades em 2014, e é o que me faz continuar nessa área. Além disso é um trabalho super dinâmico, a variedade de projetos que desenvolvemos, nos mais variados países, faz com que o dia-a-dia seja diferente um do outro e, consequentemente, você tem que estar constantemente se adequando a diversas situações.

Blog Internacionalize-se: De que forma as aptidões e conhecimentos desenvolvidos no curso de Relações Internacionais do UNICURITIBA a ajudam em seu trabalho/trajetória atual?
Andreia: O curso de Relações Internacionais nos da aptidão para analisar situações pelo aspecto social, politico, econômico e de direito. Ele nos prepara para analisar uma grande diversidade de cenários, e desperta o nosso senso critico e de reposta. Essa visão mais ampla, esse senso de olhar o problema já pensando em uma solução e suas possíveis consequências, é primordial no nosso trabalho e são poucos os cursos que te preparam para isso.

Blog Internacionalize-se: Qual a sua lembrança mais marcante da época da faculdade?
Andreia: A minha banca da Monografia, quando sai da sala e olhei para o meu orientador (Marlus Forigo) e falei toda contente “tirei 9.5” e ele respondeu “era para ter tirado 10, sua pesquisa valia um 10”. Isso ficou tão marcado que quando apresentei minha tese de mestrado estava certa que não aceitaria nada menos que a nota máxima, e deu certo. 
Além desse momento, tenho lembranças maravilhosas com os professores e colegas. Tenho profunda admiração pelos professores da época de faculdade. Levo com muito carinho todas as aulas e aprendizados, e sou muito grata pela paciência deles. Iniciamos a universidade ainda muito jovens, e muitas vezes nos falta maturidade para apreciar a oportunidade que temos, e o comprometimento dos professores nos faz crescer e ter confiança no caminho que decidimos seguir. E os colegas que se transformam em amigos e que digo com total segurança que são amigos para uma vida toda.

Blog Internacionalize-se: Deixe um conselho para os nossos leitores.
Andreia: Descubra o que você quer fazer e não desista. Relações Internacionais não é uma profissão fácil. É lotado de altos e baixos e incertezas. E por isso é importante saber o que quer, e ter confiança nas suas escolhas. Procure se especializar, estudar, ler e aproveitar todas as oportunidades que tenha. E principalmente, ajude seus colegas de profissão!

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sábado, 9 de maio de 2020

Opinião: A mercenária política externa norte-americana





Por Fernando Yazbek


Parece roteiro de Ian Flemming com adaptação e direção de Sylvester Stalone. Ex-combatentes norte-americanos saem numa missão secreta de entrar escondidos e armados num país pobre a fim de derrubar o regime de um vilão caricato e anti-democrático. Na segunda-feira (4), o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou a prisão de Luke Denman (34) e Airan Seth (41), que tentaram invadir a costa da Venezuela vindos de lanchas colombianas. O Palácio de Miraflores trata o caso como uma tentativa estadunidense de infiltrar “mercenários terroristas” que foram pagos para “assassinar os líderes do governo revolucionário”, como pronunciou o Ministro do Interior Néstor Reverol.

          As narrativas do governo bolivariano sempre despertam desconfiança dos países vizinhos e da mídia internacional. A Colômbia trata o incidente como uma encenação infundada e, na terça-feira (5), o presidente norte-americano Donald Trump sentenciou: “nada a ver com o nosso governo”. Reconhecido por 50 países como presidente da Venezuela - inclusive pelo Brasil -, o líder anti-chavista Juan Guaidó alegou que a prisão dos americanos é uma cortina de fumaça utilizada por Maduro para distrair a população. Nesta disputa de alegações, Terek Saab, procurador-geral do Ministério Público da Venezuela, apresentou denúncia contra Guaidó, o acusando de contratar os mercenários num contrato de 212 milhões de dólares com a Silvercorp USA, uma empresa militar privada da Flórida.

          O discurso oficial da Venezuela poderia ter sido rapidamente desacreditado e descartado pelas demais autoridades, dado o histórico de instabilidades políticas, jurídicas e sociais de Caracas. Isto não fossem as declarações de Jordan Goudreau, veterano das guerras no Afeganistão e Iraque, dono da Silvercorp USA. O ex-combatente das forças especiais americanas publicou vídeo em redes sociais no qual diz claramente que havia ajudado a organizar um golpe de estado contra Maduro. Goudreau afirma ter treinado os mercenários e lamenta o fracasso da missão. Outro tiro no pé da intentona golpista foi o depoimento de Juan José Rendón ao The Washigton Post e à CNN. Rendón, que é chefe do comitê de estratégia de Juan Guaidó, confessou na quinta-feira (7) que participava, desde setembro de 2019, de negociações em Miami para levar 800 paramilitares norte-americanos na captura do presidente constitucional Nicolás Maduro.

          Munido do vídeo do boina-verde, das declarações de Rendón à mídia ianque e dos passaportes de Denman e Seth, o governo venezuelano sai, mais uma vez, fortalecido. Mesmo com as sanções econômicas impostas por Washington - ainda mais no contexto da pandemia do coronavírus - Nicolás Maduro consegue manter-se com apoio das forças armadas nacionais e de boa parte da população, que até agora não comprou o discurso do desgastado Juan Guaidó.

          Com cada vez mais evidências do envolvimento da Casa Branca para desestabilização do desafeto chavista, as comparações com tentativas de golpes de Estado na América Latina promovidas pelos Estados Unidos são inevitáveis. Em 2019, Donald Trump aplaudiu a renúncia do presidente socialista boliviano Evo Morales e afirmou que a saída do líder indígena cocaleiro era uma “forte mensagem” aos regimes “ilegítimos” da Venezuela e da Nicarágua. O Departamento de Estado norte-americano , a despeito da comemoração do presidente, negou que La Paz passasse por um golpe de Estado.

          Mesmo com o difundido senso-comum da interferência estadunidense em governos nacionalistas de esquerda latino-americanos, o uso de tropas paramilitares para invasão e violência pode parecer inusual, mas não é. Dois anos depois da Revolução Cubana de 1959, que depôs o ditador cubano Fulgêncio Batista - fantoche dos EUA -, Washington financiou uma ação militar para derrubar Fidel Castro. No contexto da Guerra Fria, um país comunista há 200 quilômetros da Flórida preocupava a CIA, departamento de inteligência americano. Para disfarçar o direto envolvimento dos EUA, a ideia era armar cubanos exilados que fugiram da ilha na Revolução. Quase mil e quinhentos homens foram treinados e paramentados com US$ 13 milhões na costa sudeste americana. O plano era invadir a ilha pela Baía dos Porcos, instalar um fronte de resistência anti-castrista e contar com a aderência do povo. Um passo à frente de J. F. Kennedy, Fidel Castro conteve os ataques pelo ar, por terra e por água favorecido pelo conhecimento do terreno pantanoso e dos recifes e pelos 20 mil homens que defenderam a Revolução.

          De 1912 a 1933, os EUA invadiram militarmente a Nicarágua para impedir que fosse construído, na América Central, um canal que ligasse os oceanos Atlântico e Pacífico - pelo Mar do Caribe - que não tivesse controle norte-americano. Manágua assumiu um status de protetorado de Washington, libertada apenas em 1979 pelo legado guerrilheiro de Augusto César Sandino da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Da execução do revolucionário nos anos 30 até a “independência” nicaraguense, o país sofreu por 40 anos a influência estadunidense na política e na economia, somada a presença de fuzileiros navais. Quando Somoza, ditador apoiado pela Casa Branca, foi derrubado pela socialista FSLN no fim dos anos 70, o grupo paramilitar conhecido como “Contras” se insurgiu em oposição ao novo regime. Estes rebeldes receberam apoio militar, financeiro e logístico da administração de Ronald Reagan na Sala Oval. Mesmo com o Congresso dos Estados Unidos proibindo, em 1984, o patrocínio aos milicianos nicaraguenses, o governo americano seguiu financiando os Contras secretamente. Atualmente, a Nicarágua exige pagamento de indenização ordenada pela Corte Internacional de Justiça contra os EUA ainda em 1986.

          Do incentivo ao terrorismo de tropas clandestinas, passando por apoio a ditadores sanguinários e chegando a bloqueios econômicos, a política externa norte-americana se preocupa, na medida em que os EUA pirateiam e desviam respiradores na pandemia do coronavírus, em acusar Cuba, que exporta médicos aos países mais afetados pela covid-19, de tráfico humano. Com 80 mil compatriotas mortos pelo vírus e outros tantos sem acesso à saúde, Donald Trump tem tempo de chamar Daniel Ortega, presidente sandinista da Nicarágua, de déspota e Nicolás Maduro, na Venezuela, de ilegítimo. Venezuela, Cuba, Bolívia e Nicarágua, somadas, não atingem 200 mortes pelo novo coronavírus. Se as ações nas relações exteriores de Kennedy, Reagan, Bush, Obama e Trump fossem feitas por qualquer país latino-americano ou do Oriente Médio, este Estado estaria sob ataques de toda a comunidade internacional. E não somente neste contexto de pandemia, que agrava ainda mais a desumanidade das incursões militares sórdidas feitas na Venezuela e do bloqueio econômico assassino à Cuba.

          Somando derrotas geopolíticas e empilhando cadáveres, os Estados Unidos mostram que são apenas nas produções de Hollywood em que os mocinhos norte-americano salvam o mundo dos vilões bigodudos que querem dizimar a humanidade.



*As opiniões contidas no texto pertencem ao(à) autor(a) e não refletem, necessariamente, a posição do UNICURITIBA.

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terça-feira, 31 de março de 2020

Em pauta: Olimpíadas de Tóquio 2020+1 - a primeira da era moderna a ser adiada

Por Fernando Yazbek*



De quatro em quatro anos o mundo pára para assistir a essa tradição que é antecessora ao cristianismo e mais antiga até que os países que nela competem. Os Jogos Olímpicos, como expressão atlética do mais alto nível, chamam a atenção do público geral em proporções astronômicas: foram 2,5 bilhões de espectadores  da cerimônia de abertura do evento no Rio de Janeiro, em 2016. Mas é pela sua magnitude antiquíssima e universal que as olimpíadas captam mais ainda os olhares de historiadores e internacionalistas. Crê-se que por volta de 776 a.C. na Grécia Antiga se realizaram os primeiros jogos no santuário de Zeus, em Olímpia, como um festival esportivo e religioso. O evento era marcado pelas competições esportivas de luta e corrida, pelo caráter mitológico de homenagem aos deuses do Monte Olimpo e, principalmente, pela trégua universal entre as cidades-estado constantemente em guerra. Apesar do armistício e da fraternidade dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, apenas cidadãos gregos podiam participar. Já na era cristã do ano de 393, os jogos foram suprimidos pelo imperador romano Teodósio I, que proibiu o paganismo da competição. 

          O marco moderno das olimpíadas foi a criação do Comitê Olímpico Internacional (COI) em 1894, que organizou a primeira edição da nova era dois anos depois em Atenas, Grécia. Os gregos tinham acabado de conquistar, em 1830, a independência do domínio turco e os jogos de 1896 foram uma maneira de resgatar a cultura clássica do país. Nesta primeira olimpíada moderna competiram 14 países. No Rio, em 2016, eram 206 delegações. As mudanças da geopolítica nesse século e quarto moldaram os jogos, impulsionados pelas tecnologias da revolução industrial e os esportes de massa, cancelados pelas guerras mundiais e boicotados pelos polos na Guerra Fria. Já se viu de tudo desde então: competições que eram mais políticas que esportivas, maratonista sendo atropelado em 2004, bola entrando no gol direto do escanteio em 1924, atleta negro faturando quatro medalhas de ouro na frente de Hitler em plena Berlim de 1936, o primeiro atentado terrorista considerado global em 1972 e o primeiro ouro olímpico para um pais da África em 1960 depois da descolonização. Nunca houve na modernidade, no entanto, um adiamento.

          O coronavírus, que ataca a China desde o final de 2019 e o ocidente desde o começo de 2020, contabiliza, até o momento, mais de meio milhão de infectados pelo mundo em todos os continentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a considerar a doença uma pandemia de dimensões apocalípticas. Baseado nas recomendações de segurança da OMS e no crescente número de vitimados pelo covid-19, o COI decidiu - no dia 24 de março - pelo adiamento de um ano dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Para entender as repercussões dessa decisão sem precedentes, entrevistamos dois jornalistas esportivos, um historiador e uma ex-atleta que falaram de cronograma, dos impactos históricos e esportivos, da punição por doping imposta à Rússia e de xenofobia nas olimpíadas.

          Daniel Emmendoerfer Castro é jornalista e trabalha na Folha de São Paulo desde 2015. Ele era o repórter designado para a cobertura do evento neste ano, pelo veículo.  Quando perguntado sobre como o COI atuou no processo de adiamento, o repórter olímpico ponderou que a decisão tomada com quatro meses de antecedência foi razoável, mas que o comitê falhou em não se posicionar ao lado dos atletas desde a eclosão da pandemia. Para ele, houve uma demora para admitir que poderia haver sim o adiamento, uma vez que queriam entregar a definição de uma nova data dos jogos (definida quase uma semana depois da postergação) junto à noticia da suspensão. Castro ressalta que se abre um precedente inédito com uma olimpíada realizada em ano ímpar, já que mesmo nos cancelamentos com as guerras se respeitou o quadriênio: “saindo do livro de regras, quebra-se um tabu”.

          De fato, houve muita demora na decisão do COI e, se não fosse pela pressão do governo japonês, “talvez demorasse mais”. Foi isto o que nos disse o jornalista Ayrton Batista Junior, da rádio CBN (Central Brasileira de Notícias) e do site globoesporte.com. Ele discorda de Daniel Castro de que se abre um precedente importante na história dos jogos olímpicos por se tratar, no contexto da pandemia do coronavírus, de um fato "absolutamente extraordinário". “Tusca Jr”, como é conhecido o filho de Ayrton Batista - três vezes presidente do Sindicato dos Jornalistas do Paraná e duas vezes secretário de estado de imprensa -, nos lembra do tenista paranaense Thiago Wild que contraiu o covid-19 no pré-olímpico. Sem o adiamento, Wild perderia todas as chances - ainda que remotas como frisou Batista - de participar dos jogos em Tóquio se fossem em 2020.

          Daniel e Ayrton concordam que um ano faz muita diferença na perfomance esportiva de um atleta de alto desempenho. Mas, por cada competidor reagir à sua própria maneira, não há como cravar que algum país se beneficiaria do adiamento no quadro de medalhas. O repórter da Folha frisa que atletas experientes têm a vantagem de conhecer melhor o próprio corpo, na mesma medida que esportistas mais jovens terão mais tempo para se desenvolver. Ele conclui, no entanto, que nunca saberemos os medalhistas de 2020 que, certamente, não serão os mesmos de 2021. Já o produtor da CBN Esportes nos alerta para a situação delicada das ginásticas com o adiamento. "Ter 19 anos é muito diferente de ter 20. O auge [do ginasta] é precoce e dura muito pouco”. Diferente é a situação do futebol masculino, em que só se permitem jogadores de até 23 anos. Resolve-se, facilmente, afrouxando o limite de idade para 24, afirmou Ayrton Batista Junior.

          Outro assunto que fez os colegas jornalistas discordarem foi a suspensão imposta pela Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) à Rússia, proibida de ser representada em Tóquio 2020 e nos jogos de inverno de Pequim em 2022, além da Copa do Mundo do Catar nesse mesmo ano. “[O adiamento dos Jogos] não altera nada. Mesmo que a punição fosse apenas para os Jogos de 2020, deveria ser mantida porque o COI pretende continuar com o ano 2020 na marca do evento”, disse a “enciclopédia ambulante”, apelido carinhoso de Batista Jr. Para Daniel Castro, na antemão, a suspensão de Tóquio faz como que haja tempo hábil para haver julgamento da apelação russa na Corte Arbitral do Esporte, instância máxima do direito esportivo. Havia temores, para Castro, de que não houvesse julgamento. O adiamento dos jogos acabou, portanto, dando chances para que ocorresse a apuração. Havendo decisão - favorável ou contrária - quanto à Rússia, continua o repórter, acaba-se com a insegurança jurídica que paira sobre as federações, que tratam os russos cada qual de sua maneira. Ele finaliza reiterando que o cabo-de-guerra entre a Rússia, que se sente historicamente injustiçada, e os Estados Unidos, que lideram o lobby para punições severas a Moscou, só cria incertezas para todos do o universo esportivo.

          Batista Jr e Castro afinaram as respostas quando o assunto foi xenofobia. O  surto do novo coronavírus, motivo do adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio2020 no Japão, teve seu epicentro na vizinha China. Apesar de não haver fronteira terrestre entre os países, o preconceito não respeita território. Muitos casos de xenofobia contra asiáticos foram registrados na Europa, Estados Unidos e América Latina desde a explosão da pandemia. Até mesmo Donald Trump, presidente da maior potência militar do mundo, se referiu ao covid-19 como “vírus chinês”. Gesto foi repetido no Brasil pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e filho do Presidente da República, que deflagrou uma crise diplomática com o maior parceiro comercial brasileiro. Mesmo que a ignorância confunda um vírus com um ser humano, Ayrton Batista Junior recorda que “a comunidade esportiva sempre deu exemplos de solidariedade” e que os boicotes dos EUA aos jogos de Moscou em 1980 e da URSS à olimpíada de Los Angeles em 1984 foram promovidas por estados e governos, não pelo corpo esportivo. Daniel vê na xenofobia um grande mal do esporte globalizado, mas acredita que o mundo esportivo tem pautado causas sociais com maior atenção, haja visto a crescente onda de racismo que se observa em jogos de futebol por todo o continente europeu. Ele também acredita que o COI deve ficar vigilante quanto à intolerância, embora o próprio comitê internacional seja historicamente distanciado de tópicos como este. Por sua abrangência global, o COI proíbe manifestações políticas durante competições dos Jogos Olímpicos. Castro ainda sublinha preocupação na relação hostil que o Japão nutre de longa data com as próximas China e Coréia do Sul.

          O Blog Internacionalize-se também ouviu a ex-atleta, e também jornalista, Juliana Veiga. Ela cobriu os Jogos Olímpicos de Londres em 2012 e do Rio de Janeiro em 2016 na bancada do telejornal esportivo SportCenter, no horário nobre da emissora ESPN Brasil. Veiga, que é pentacampeã brasileira de snowboard, conhece bem os dois lados do jornalismo esportivo e por isto viu com bons olhos o adiamento já que “cuidar das vidas é prioridade, tanto de atletas quanto de jornalistas”. Disse que a demora na tomada de decisão era esperada, por haver infinitos fatores logísticos, esportivos e comerciais a serem costurados com a suspensão. A pioneira do surfe na neve no Brasil explicou que, mesmo que a quarentena, o distanciamento e o isolamento social - para frear o avanço do vírus - afetem os treinos, os atletas tem maior facilidade para ajustar a rotina e se recuperarem de lesão. Para ela, as Olimpíadas de Tóquio não trarão  grande prejuízo esportivo dos competidores, mas sim emocional da sociedade como um todo.

          Para finalizar, o Blog ouviu o historiador Andrew Patrick Traumann, doutor em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal do Paraná. O adiamento dos jogos que seriam em 2020, diz ele, entra pra história com igual importância dos cancelamentos de 1916 em Berlim, 1940 em Tóquio (coincidentemente) e 1944 em Londres. O professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba coloca as olimpíadas adiadas de Tóquio como mais relevantes historicamente que os boicotes de EUA e URSS na Guerra Fria, uma vez que os jogos aconteceram mesmo sem a presença deles. Traumann ainda vê a atual suspensão em prateleira mais alta de notabilidade em comparação com os atentados do grupo palestino Setembro Negro, que mataram 11 israelenses na vila olímpica de Munique em 1972. Os assassinatos não são tão lembrados pelo público em geral e fica restrito aos estudos das R. I. sobre o Oriente Médio, defende o professor, enquanto o cancelamento dos Jogos Olímpicos por conta da pandemia do coronavírus transcende essa bolha. O historiador parece discordar do repórter Daniel Castro quando diz que o adiamento é, inclusive, pior para a Rússia, porque retarda o cumprimento da punição.

            Jogos Olímpicos e política internacional sempre estiveram umbilicalmente ligados. Esta relação passou, além dos já citados atentados terroristas, boicotes na Guerra Fria e dos cancelamentos nas Grandes Guerras,  pelo desmembramento da URSS em 1991, quando Letônia, Estônia e Lituânia desfilaram em Barcelona (1992) com o hino do comitê olímpico. Em 2000, o mesmo COI, que abrigou os ex-soviéticos desgarrados, baniu o Afeganistão dos jogos de Sydnei em represália ao regime Talibã. As para-olimpíadas - modalidade de competição para deficientes físicos e amputados - teve sua criação no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, porque havia uma enormidade de feridos pelo conflito. Exemplos da combinação político-esportiva dão uma lista extensa demais para se enumerar. O coronavírus soma a este panorama e, possivelmente, levaremos gerações para entender totalmente o impacto da pandemia nos Jogos Olímpicos e nas relações internacionais. 




*Fernando Yazbek é aluno do segundo período de Relações Internacionais do UNICURITIBA e também cursa Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. Além de integrar a equipe de 2020 do Blog Internacionalize-se, também é responsável pelo Blog Democratiba - que discute os meandros políticos que interferem na vida esportiva do Coritiba Foot Ball Club, seu time do coração. 


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