quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Em pauta: Coronavírus e xenofobia




Medo, aversão ou profunda antipatia. Desconfiança em relação às pessoas que possuem uma cultura, raça, religião e/ou nacionalidade diferente. Compartilhando diversas características similares ao racismo, a xenofobia pode se manifestar de diversas formas envolvendo as relações e percepções do “endogrupo” em relação ao “exogrupo”, incluindo o medo de perda de identidade, suspeição acerca de suas atividades, agressão e desejo de eliminar a sua presença para assegurar uma suposta pureza.

O fenômeno da xenofobia está de volta. Ou ele nem sequer foi superado? Normalmente só se discute sobre isso quando um perigo emergente já se torna tão perceptível que a situação possa vir a piorar. Até então, costuma-se acreditar que esse problema seja coisa passada e que a discriminação nos últimos anos tenha diminuído. Mas a realidade, que novamente confirma o caráter contraditório da existência humana, demonstra que a história não necessariamente ruma numa direção positiva, como se quer acreditar, mas que avanços contrastam com recuos. Idéias que se tinha como fora de moda, absurdas e retrógradas, podem novamente vir a ser atuais e modernas. Isso significa que as idéais não morrem pelo simples decurso do tempo e que, em conformidade com o espírito de uma época, podem retornar.[i]

Depois (ou em conjunto) dos episódios de preconceito e xenofobia aos haitianos e, mais recente, aos venezuelanos, nos deparamos agora com outras vítimas: os asiáticos. 

Isso ocorre porque epidemias, doenças contagiosas e crises sanitárias são momentos que revelam o racismo, o estigma e os discursos colonialistas que se perpetuam no mundo. Essas situações provocam medo, especialmente quando causadas por um novo patógeno, como o coronavírus. Entretanto, muitos destes temores não possuem qualquer base na ciência ou na saúde, mas sim no medo do desconhecido, expondo, não raramente, uma profunda e enraizada xenofobia. 

Infelizmente, não é novidade essa relação entre as epidemias e os comportamentos xenofóbicos. Já no século XV encontrava-se discriminação devido à peste bubônica, do mesmo modo como ocorreu posteriormente com a cólera, com a varíola, com a SARS, com o ebola, com a gripe aviária e suína. Em todos os casos há uma particularidade em comum: a presença de um “bode expiatório”, o qual leva a culpa pela difusão da doença.

Há quem diga que a história das epidemias mostra que, diante da dificuldade de as pessoas lidarem com o inexplicável, já sempre uma necessidade em nomear culpados, na tentativa de buscar razões morais que expliquem o adoecimento.

Em geral, os bodes expiatórios costumam ser aqueles que não estão bem integrados à comunidade, pessoas de outras nacionalidades. Essa busca por um “culpado” aumenta ainda mais quando a epidemia se dá em uma localização geográfica bem definida, acarretando em reações bastante agressivas contra as pessoas desta localidade. Enraizadas nessas reações, há algo muito familiar e profundamente insidioso: os insultos feitos contra uma suposta selvageria, atrasado ou imundice dos estrangeiros como pretexto para a exclusão, ejeção ou eliminação deles. Assim, os estereótipos sobre o outro tendem à hostilidade ou desdém, transformando-o exótico, distante ou até monstro.

No que tange os asiáticos, a expressão “perigo amarelo” é utilizada desde o século XIX para caracterizá-los como “ameaça” às nações ocidentais. Além disso, há pelo menos 30 anos, a imprensa liberal ocidental recorre à expressão “infestação” ao falar sobre a produção de manufatura barata oriunda, principalmente, da China – como quem quer afirmar que os chineses estão “contaminando o mundo” de alguma forma.  

Dentre as principais calúnias dirigidas aos chineses – para que pareçam estranhos, inassimiláveis e inadmissíveis aos países “civilizados” – são aquelas relacionadas à comida e higiene. Inclusive, já foram rotulados como “comedores de ratos sujos e pagãos”, no início do século XIX, sendo utilizados até em anúncios de venenos para pragas (“Rough on Rats”), que sugeriam ser quase tão eficazes no controle aos animais quanto o povo chinês faminto.  Enquanto isso, a mídia pregava e expandia esse estereótipo, elevando-o a percepções monstruosas e temerosas, influenciando até mesmo assassinato em massa em Los Angeles, em 1871[ii]. Na ocasião, mais de 500 pessoas invadiram o bairro de Chinatown matando, ao menos, 20 homens enforcados e, posteriormente, mutilando seus cadáveres. Anos depois, em 1882, a raiva sinofóbica nos Estados Unidos levou à aprovação da Lei de Exclusão Chinesa, proibindo novos imigrantes da China e tornando ilegal que os já existentes se tornassem cidadãos. Tal lei só foi revogada em 1943, pela Lei Magnuson, a qual permitia a cota de entrada de (apenas) 105 chineses ao ano.

A atual repercussão do coronavírus na China reabre esse debate que, em última instância, é sobre produção de conhecimento e poder. Assim, aparecimento de uma epidemia é um forte modo de revelar o totalitarismo e doença que ronda a sociedade, nas suas mais diversas formas. Alimentado também pela desinformação, o preconceito vêm se alastrando ainda mais, além de levar a ações infundadas, como deixar de consumir produtos e comidas típicas do país, bem como evitar o próprio contato com pessoas com traços asiáticos.

Então, a ignorância (no seu mais puro significado de falta de conhecimento), associado à disseminação de falsas notícias pelas redes sociais, levantou o clamor de fechar as fronteiras para toda e qualquer pessoa chinesa. Seria como deixar os “ratos” do lado de fora, para que apodreçam e morram, sem qualquer direito à defesa e cuidados. Sem qualquer solidariedade, compressão ou até mesmo empatia – aquela mesma que ocupa tantas frases motivacionais (e hipócritas) na geração da “gratidão”.

Destaca-se, entretanto, que tal desconhecimento – e falta de interesse em conhecer – leva à discriminação não apenas dos chineses, apontados pela sociedade como culpados pelo vírus, mas também a toda e qualquer outra pessoa “com os olhos puxados”. Chineses, japoneses, coreanos, taiwaneses, tailandeses, mongóis e tantos outros, bem como seus descendentes de primeira, segunda, terceira geração... Ninguém fica imune ao veneno dos insultos, que veem nas redes sociais como uma “arena”.

Enquanto isso, o número de casos de preconceito não param de crescer, levando asiáticos de todas as origens a até brincarem com a irritante e constante suspeita que os permeiam; muitos deles planejam tossir alto em público apenas para “ver quem é racista”.

Na Malásia, na Coreia do Sul e em Singapura, por exemplo, foram lançadas petições buscando banir a entrada de cidadãos chineses em seus países[iii]. Já na Itália, há relatos não só de ameaças a chineses, mas também bares que proibiram a entrada deles, alegando inexistentes “medidas de segurança internacionais”[iv]. Países como França, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos também tiverem incidentes de racismo e xenofobia.

Já no Brasil, não é diferente; aquela ideia de país cordial e receptivo só funciona na literatura. Por aqui, já houve registro de preconceito a uma descendente de japoneses (Marie Okabayashi de Castro Lemos, 23) em um metrô do Rio de Janeiro, à imigrante chinesa e professora de mandarim (Si Liao, 32) e, até mesmo, segregação em condomínios comerciais. Sobre estes últimos casos, foram noticiados os edifícios Berrini 550 e Meridian, ambos na capital paulista, os quais solicitavam que os asiáticos utilizassem um elevador privativo, bem como evitassem contato com outras pessoas durante duas semanas. Nem mesmo o Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) ficou imune; em vários vídeos e publicações recentes é possível encontrar comentários discriminatórios[v]

Embora este coronavírus seja novo, as doenças da xenofobia e do racismo não são; ocorre que, como a própria história demonstra, estas últimas são muito mais difíceis de conter e muito mais letais. 

Aliás, isso explica, em parte, porque as pessoas parecem se importar muito mais com as doenças “importadas” do que aquelas que realmente representam um risco para suas vidas, como dengue, febre amarela e o próprio sarampo, que voltou às notícias no último ano. Acredita-se que a fonte dos nossos problemas é o exterior, que o conflito só existe porque vem alguém de fora perturbar a nossa paz e a harmonia, enquanto as doenças que já estão entre nós são “normais”.

Quando os interesses particulares das pessoas são manipulados de tal forma, que o passado não tenha mais sentido e que as perspectivas racionais de futuro sejam concebidas como inalcansáveis, operam idéias que nem sequer mais eram levadas a sério.[vi]

Xenofobia e racismo são crimes previstos na Lei 9.459/1997, com pena de até cinco anos de prisão.


[i] ANDRIOLI, Antonio Inácio. O retorno da xenofobia. Revista Espaço Acadêmico. Ano II. n. 13. jun. 2002. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20080526123304/http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli1.htm>.
[ii] WALLACE, Kelly. Forgotten Los Angeles History: The Chinese Massacre of 1871. Los Angeles Public Library. 19 mai. 2017. Disponível em: < https://www.lapl.org/collections-resources/blogs/lapl/chinese-massacre-1871>.
[iii] MOREIRA, Matheus. Em meio a surto de coronavírus, orientais no Brasil relatam preconceito e desconforto. Folha de S. Paulo. 03 fev. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml>.
[iv] CHINESES sofrem xenofobia na Itália: ‘Vocês têm coronavírus’. Terra. 10 fev. 2020. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/mundo/chineses-sofrem-xenofobia-na-italia-voces-tem-coronavirus,45d6cbcbdc36d8cfe8066e8151de0818figjogrq.html>.
[v] MOREIRA, Matheus. Em meio a surto de coronavírus, orientais no Brasil relatam preconceito e desconforto. Folha de S. Paulo. 03 fev. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml>.
[vi] ANDRIOLI, Antonio Inácio. O retorno da xenofobia. Revista Espaço Acadêmico. Ano II. n. 13. jun. 2002. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20080526123304/http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli1.htm>.
 


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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Inscrições abertas - Vem ser blogueiro com a gente!

Estão abertas 5 vagas para alunos de Direito e 5 vagas para alunos de Relações Internacionais para compor a equipe de produção de conteúdo dos Blogs "Unicuritiba Fala Direito" e "Internacionalize-se". Os alunos selecionados ficarão responsáveis por produzir conteúdo para o Blog de uma das seguintes maneiras: entrevistando alunos egressos, entrevistando palestrantes que participam de eventos do UNICURITIBA, entrevistando alunos que participaram de eventos, intercâmbios e viagens institucionais, entrevistando professores sobre temas atuais relacionados aos cursos, coletando com professores e acadêmicos textos de opinião sobre temas atuais relacionados aos cursos, alimentando as Seções "Me indica um livro" e "Me indica um Filme" com indicações de livros e filmes que abordem temas relacionados aos cursos, entre outras atribuições.
  •  Acesse este link para saber mais informações sobre o processo seletivo.

Processo Seletivo:

Inscrições: 
De 20 de fevereiro a 5 de março.

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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Em pauta: Roberto Alvim, Joseph Goebbels, Karl Popper e a intolerância ao intolerante







Por Amanda Delgado Gussão**



No último dia 16 de janeiro, circulou nas redes sociais da Secretaria Especial da Cultura um vídeo institucional para anunciar o Prêmio Nacional das Artes do governo de Jair Bolsonaro. Nele, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, além de usar referências que remetem ao período liderado por Adolf Hitler, parafraseou uma citação do ministro de propaganda do regime nazista, Joseph Goebbels. O vídeo teve grande repercussão, inclusive internacional e, no dia seguinte (17), Roberto Alvim foi exonerado por Bolsonaro, que declarou em nota: “Um pronunciamento infeliz, ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência".

No vídeo de cerca de 4 minutos e meio, a trilha sonora escolhida é obra de Richard Wagner, compositor alemão anti-semita, declarado por Hitler uma inspiração. A composição visual e o vocabulário utilizados por Roberto Alvim remetem àqueles dos discursos de Goebbels. O que realmente causou repúdio e levou à sua exoneração, no entanto, foi a infeliz frase: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo. Ou então não será nada” (Roberto Alvim, ex-secretário oficial da Cultura). A frase imita parte de uma declaração de Goebbels (1933), feita à diretores de teatro alemães para especificar as diretrizes de como esse ramo artístico deveria ser naquela época: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.

Paul Joseph Goebbels foi ministro de propaganda de Adolf Hitler durante o período de 1933 a 1945, sua função foi fundamental para garantir o apoio da população ao Führer dadas suas estratégias de “lavagem cerebral”. Através do controle de todos os meios de comunicação da época e de qualquer aparelho cultural e educativo, Goebbels tinha como objetivo fazer com que Hitler, o salvador nacional, fosse adorado, e que todo o antissemitismo e ódio declarado no regime nazista fosse disfarçado como amor à pátria e nacionalismo.

A exoneração de Roberto Alvim não apenas salienta a gravidade do seu discurso como também invoca questões de liberdade de expressão e tolerância. Deveria, o discurso do ex-secretário, ser tolerado em função de seu direito à liberdade de expressão? Seria a citação à Goebbels apenas uma má escolha de referência? A resposta é não. Simplesmente porque a sua fala traz toda a carga do período e do personagem que a pronunciou originalmente, sendo assim uma frase de citação preocupante que não pode ser aceita como liberdade de expressão. Junto com a frase utilizada por Alvim vem todo seu contexto histórico original o que desrespeita os grupos sociais afetados naquele período - especialmente, a comunidade judaica. Repetí-la livremente como que orgulhoso de sua fonte e não ter consequências, significa tolerar a carga negativa que ela representa e não se importar com seus desdobramentos no momento atual. Afinal, a principal preocupação é que o uso dos mesmos recursos um dia utilizados para o controle social nazista seja aceito como algo normal  e que pode se repetir.

A intolerância ao discurso do ex-secretário especial da Cultura, portanto, é necessária para que a tolerância e os tolerantes continuem existindo, como afirmou Karl Popper (1945): “Tolerância ilimitada leva necessariamente ao desaparecimento da tolerância. [...]  Nós deveríamos portanto reivindicar, no nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.” Aceitar o discurso de Alvim, como o era aquele de Goebbels, é permitir que o que foi tolerado um dia, o volte a ser. Que as conjunturas desumanas do regime nazista passem como normais e honrosas de serem repetidas saudosamente. 

O limite da tolerância com o intolerante, assim, é fundamental para que a própria tolerância siga existindo. Afastar do cargo e responsabilizar aqueles que fazem uso de referências de um dos períodos mais sombrios da história é fundamental para que se entenda que os limites existem, e que o que um dia foi aplaudido, hoje não é mais tolerado, e não voltará a ser.   


POPPER, Karl. Open Society and Its Enemies. Londres: George Routledge & Sons, Ltd., 1945. 755 p.


** Amanda é egressa de Relações Internacionais do UNICURITIBA. Seu trabalho de conclusão de curso abordou as conexões entre o fascismo, a liberdade de expressão e o discurso de ódio na Internet. 


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