Medo, aversão ou profunda antipatia.
Desconfiança em relação às pessoas que possuem uma cultura, raça, religião e/ou
nacionalidade diferente. Compartilhando diversas características similares ao
racismo, a xenofobia pode se
manifestar de diversas formas envolvendo
as relações e percepções do “endogrupo” em relação ao “exogrupo”, incluindo o
medo de perda de identidade, suspeição acerca de suas atividades, agressão e
desejo de eliminar a sua presença para assegurar uma suposta pureza.
O fenômeno da xenofobia está de volta. Ou ele nem
sequer foi superado? Normalmente só se discute sobre isso quando um perigo
emergente já se torna tão perceptível que a situação possa vir a piorar. Até
então, costuma-se acreditar que esse problema seja coisa passada e que a discriminação
nos últimos anos tenha diminuído. Mas a realidade, que novamente confirma o
caráter contraditório da existência humana, demonstra que a história não
necessariamente ruma numa direção positiva, como se quer acreditar, mas que
avanços contrastam com recuos. Idéias que se tinha como fora de moda, absurdas
e retrógradas, podem novamente vir a ser atuais e modernas. Isso significa que
as idéais não morrem pelo simples decurso do tempo e que, em conformidade com o
espírito de uma época, podem retornar.[i]
Depois (ou em
conjunto) dos episódios de preconceito e xenofobia aos haitianos e, mais
recente, aos venezuelanos, nos deparamos agora com outras vítimas: os
asiáticos.
Isso ocorre porque
epidemias, doenças contagiosas e crises sanitárias são momentos que revelam o
racismo, o estigma e os discursos colonialistas que se perpetuam no mundo.
Essas situações provocam medo, especialmente quando causadas por um novo
patógeno, como o coronavírus. Entretanto, muitos destes temores não possuem
qualquer base na ciência ou na saúde, mas sim no medo do desconhecido, expondo,
não raramente, uma profunda e enraizada xenofobia.
Infelizmente, não
é novidade essa relação entre as epidemias e os comportamentos xenofóbicos. Já
no século XV encontrava-se discriminação devido à peste bubônica, do mesmo modo
como ocorreu posteriormente com a cólera, com a varíola, com a SARS, com o
ebola, com a gripe aviária e suína. Em todos os casos há uma particularidade em
comum: a presença de um “bode expiatório”, o qual leva a culpa pela difusão da
doença.
Há quem diga que a
história das epidemias mostra que, diante da dificuldade de as pessoas lidarem
com o inexplicável, já sempre uma necessidade em nomear culpados, na tentativa
de buscar razões morais que expliquem o adoecimento.
Em geral, os bodes
expiatórios costumam ser aqueles que não estão bem integrados à comunidade,
pessoas de outras nacionalidades. Essa busca por um “culpado” aumenta ainda
mais quando a epidemia se dá em uma localização geográfica bem definida,
acarretando em reações bastante agressivas contra as pessoas desta localidade. Enraizadas
nessas reações, há algo muito familiar e profundamente insidioso: os insultos
feitos contra uma suposta selvageria, atrasado ou imundice dos estrangeiros como
pretexto para a exclusão, ejeção ou eliminação deles. Assim, os estereótipos
sobre o outro tendem à hostilidade ou desdém, transformando-o exótico, distante
ou até monstro.
No que tange os
asiáticos, a expressão “perigo amarelo” é utilizada desde o século XIX para
caracterizá-los como “ameaça” às nações ocidentais. Além disso, há pelo menos 30
anos, a imprensa liberal ocidental recorre à expressão “infestação” ao falar
sobre a produção de manufatura barata oriunda, principalmente, da China – como
quem quer afirmar que os chineses estão “contaminando o mundo” de alguma forma.
Dentre as principais
calúnias dirigidas aos chineses – para que pareçam estranhos, inassimiláveis e
inadmissíveis aos países “civilizados” – são aquelas relacionadas à comida e
higiene. Inclusive, já foram rotulados como “comedores de ratos sujos e
pagãos”, no início do século XIX, sendo utilizados até em anúncios de venenos
para pragas (“Rough on Rats”), que sugeriam ser quase tão eficazes no controle
aos animais quanto o povo chinês faminto.
Enquanto isso, a mídia pregava e expandia esse estereótipo, elevando-o a
percepções monstruosas e temerosas, influenciando até mesmo assassinato em
massa em Los Angeles, em 1871[ii].
Na ocasião, mais de 500 pessoas invadiram o bairro de Chinatown matando, ao
menos, 20 homens enforcados e, posteriormente, mutilando seus cadáveres. Anos
depois, em 1882, a raiva sinofóbica nos Estados Unidos levou à aprovação da Lei
de Exclusão Chinesa, proibindo novos imigrantes da China e tornando ilegal que
os já existentes se tornassem cidadãos. Tal lei só foi revogada em 1943, pela
Lei Magnuson, a qual permitia a cota de entrada de (apenas) 105 chineses ao
ano.
A atual
repercussão do coronavírus na China reabre esse debate que, em última
instância, é sobre produção de conhecimento e poder. Assim, aparecimento de uma
epidemia é um forte modo de revelar o totalitarismo e doença que ronda a
sociedade, nas suas mais diversas formas. Alimentado também pela desinformação,
o preconceito vêm se alastrando ainda mais, além de levar a ações infundadas,
como deixar de consumir produtos e comidas típicas do país, bem como evitar o
próprio contato com pessoas com traços asiáticos.
Então, a
ignorância (no seu mais puro significado de falta de conhecimento), associado à
disseminação de falsas notícias pelas redes sociais, levantou o clamor de
fechar as fronteiras para toda e qualquer pessoa chinesa. Seria como deixar os
“ratos” do lado de fora, para que apodreçam e morram, sem qualquer direito à
defesa e cuidados. Sem qualquer solidariedade, compressão ou até mesmo empatia
– aquela mesma que ocupa tantas frases motivacionais (e hipócritas) na geração
da “gratidão”.
Destaca-se,
entretanto, que tal desconhecimento – e falta de interesse em conhecer – leva à
discriminação não apenas dos chineses, apontados pela sociedade como culpados
pelo vírus, mas também a toda e qualquer outra pessoa “com os olhos puxados”.
Chineses, japoneses, coreanos, taiwaneses, tailandeses, mongóis e tantos
outros, bem como seus descendentes de primeira, segunda, terceira geração... Ninguém
fica imune ao veneno dos insultos, que veem nas redes sociais como uma “arena”.
Enquanto isso, o
número de casos de preconceito não param de crescer, levando asiáticos de todas
as origens a até brincarem com a irritante e constante suspeita que os
permeiam; muitos deles planejam tossir alto em público apenas para “ver quem é
racista”.
Na Malásia, na
Coreia do Sul e em Singapura, por exemplo, foram lançadas petições buscando
banir a entrada de cidadãos chineses em seus países[iii].
Já na Itália, há relatos não só de ameaças a chineses, mas também bares que
proibiram a entrada deles, alegando inexistentes “medidas de segurança
internacionais”[iv]. Países como França,
Reino Unido, Canadá e Estados Unidos também tiverem incidentes de racismo e
xenofobia.
Já no Brasil, não
é diferente; aquela ideia de país cordial e receptivo só funciona na
literatura. Por aqui, já houve registro de preconceito a uma descendente de
japoneses (Marie Okabayashi de Castro Lemos, 23) em um metrô do Rio de Janeiro,
à imigrante chinesa e professora de mandarim (Si Liao, 32) e, até mesmo,
segregação em condomínios comerciais. Sobre estes últimos casos, foram
noticiados os edifícios Berrini 550 e Meridian, ambos na capital paulista, os
quais solicitavam que os asiáticos utilizassem um elevador privativo, bem como
evitassem contato com outras pessoas durante duas semanas. Nem mesmo o
Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) ficou imune; em vários vídeos
e publicações recentes é possível encontrar comentários discriminatórios[v].
Embora este
coronavírus seja novo, as doenças da xenofobia e do racismo não são; ocorre
que, como a própria história demonstra, estas últimas são muito mais difíceis
de conter e muito mais letais.
Aliás, isso
explica, em parte, porque as pessoas parecem se importar muito mais com as
doenças “importadas” do que aquelas que realmente representam um risco para
suas vidas, como dengue, febre amarela e o próprio sarampo, que voltou às
notícias no último ano. Acredita-se que a fonte dos nossos problemas é o
exterior, que o conflito só existe porque vem alguém de fora perturbar a nossa
paz e a harmonia, enquanto as doenças que já estão entre nós são “normais”.
Quando os interesses particulares das pessoas são manipulados de tal
forma, que o passado não tenha mais sentido e que as perspectivas racionais de
futuro sejam concebidas como inalcansáveis, operam idéias que nem sequer mais
eram levadas a sério.[vi]
Xenofobia e racismo são
crimes previstos na Lei 9.459/1997, com pena de até cinco anos de prisão.
[i] ANDRIOLI, Antonio Inácio. O retorno da
xenofobia. Revista Espaço Acadêmico.
Ano II. n. 13. jun. 2002. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20080526123304/http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli1.htm>.
[ii] WALLACE, Kelly. Forgotten Los Angeles
History: The Chinese Massacre of 1871. Los
Angeles Public Library. 19 mai. 2017. Disponível em: < https://www.lapl.org/collections-resources/blogs/lapl/chinese-massacre-1871>.
[iii] MOREIRA, Matheus. Em
meio a surto de coronavírus, orientais no Brasil relatam preconceito e
desconforto. Folha de S. Paulo. 03
fev. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml>.
[iv] CHINESES sofrem xenofobia na Itália:
‘Vocês têm coronavírus’. Terra. 10
fev. 2020. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/mundo/chineses-sofrem-xenofobia-na-italia-voces-tem-coronavirus,45d6cbcbdc36d8cfe8066e8151de0818figjogrq.html>.
[v] MOREIRA, Matheus. Em
meio a surto de coronavírus, orientais no Brasil relatam preconceito e
desconforto. Folha de S. Paulo. 03
fev. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml>.
[vi] ANDRIOLI, Antonio Inácio. O retorno da
xenofobia. Revista Espaço Acadêmico.
Ano II. n. 13. jun. 2002. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20080526123304/http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli1.htm>.