Em 30 de outubro de 1998, no 38o aniversário de Diego Armando Maradona Franco, era fundada a Igreja Maradoniana, em Rosário, que comemora o Natal naquela data. O calendário móvel da Sexta-Feira Santa, da Igreja Católica, se cravou na quinta-feira 25 de novembro de 2020 para os fiéis de Don Diego de la gente. Em respeito aos seguidores del Dios, esperei o terceiro dia da morte para escrever este obituário.
O único consenso sobre Maradona é de que ele está no panteão dos deuses do futebol. Há quem diga que foi melhor que Pelé e Garrincha e quem não o considere nem o melhor dos argentinos – atrás de Alfredo Di Stéfano e Lionel Messi. As dicotomias deram o tom da vida do menino que nasceu pobre em Villa Fiorito, conquistou o mundo e morreu decadente num milionário condomínio na grande Buenos Aires. A discussão de quem foi mais craque é – para lá de apaixonada – anacrônica e fora de propósito. Mas Maradona fez, só com a perna esquerda, o que quase ninguém fez com os dois pés. E foi pela esquerda que Diego foi o mais político dos jogadores de futebol.
Como nada acerca de Maradona é preto no branco, não assusta lembrar que o camisa 10 fez campanha para Carlos Menem, o presidente neoliberal argentino que concedeu indulto ao ditador Jorge Rafael Videla, que organizara a tumultuada Copa de 1978 em meio ao regime militar do país. O jovem Maradona não jogou aquele primeiro Mundial conquistado pela seleção albiceleste, mas já seria convocado para a Copa seguinte na Espanha em 1982, ano em que se transferia do Boca Jrs ao Barcelona e no qual estourava a Guerra das Malvinas.
Como recorrentemente acontece com seleções campeãs do mundo, a entressafra argentina de 82 ofuscou o brilho de Maradona, que foi expulso de campo ao chutar os testículos de Batista, quando o Brasil de Zico e Sócrates eliminava a Argentina. Quatro anos mais tarde, já vestindo as cores do Napoli, Maradona gozava de tanta moral no selecionado argentino que – além de usar a braçadeira de capitão – vetou a convocação de Daniel Passarella, quem havia erguido a taça de 1978. E foi justamente no México em 1896 o auge de Maradona, como jogador, e de Diego, como símbolo militante.
É ingênuo tratar a vitória da Argentina sobre a Inglaterra nas quartas-de-final daquela copa como uma vingança pelas Malvinas. No entanto, Maradona lavou a alma dos argentinos humilhados e dos enviados à morte por Galtieri e mortos por Tatcher no arquipélago. De mão – de Deus ou de Diego, o primeiro gol é quase acessório perto do segundo. Maradona jogou para inglês ver, já que nenhum dos onze adversários parou o gol mais bonito da história das Copas. Ali se consagrava um herói de guerra. Na final, contra a Alemanha, virava um Deus.
Do apoio a Menem nos anos 90, cujo governo pretendia ter “relações carnais” com os Estados Unidos, o já aposentado Maradona protestou contra a presença do presidente norte-americano na Cúpula das Américas de 2005. Em Mar del Plata, ao lado de Evo Morales, Diego trocou a camisa argentina por uma mensagem a George W. Bush, a quem se referia como “lixo humano”.
No mesmo ano, Maradona foi recebido por Hugo Chávez no Palácio Miraflores com honrarias de um chefe de estado. O craque se dizia chavista e, após a morte do venezuelano, o argentino fez campanha em 2013 para que Nicolás Maduro seguisse o legado do antecessor. Em 2018, Maradona participou de comícios para reeleição de Maduro e, no ano seguinte, dedicou a vitória do Dorados de Sinaloa, time mexicano que treinava, a Caracas.
Às vésperas do impeachment de Dilma em 2016, Maradona se dizia um soldado da presidenta e de Lula. Comemorou como um gol aos 45 do segundo tempo a soltura do ex-presidente brasileiro da prisão em 2019: “Lula querido, Diego está com você”.
Na Argentina, foi um ferrenho defensor do kirchnerismo. Apoiou Néstor, Cristina e, recentemente, o presidente Alberto Fernández. Era tão próximo da Casa Rosada que esteve presente no velório íntimo de Néstor em 2010. Quando ainda era senadora, cogitou-se que Cristina concorreria a presidência em 2019 com Maradona de vice na chapa.
Mas foi em Cuba que este argentino, assim como Che, mais se envolveu politicamente. Foi parar na ilha na virada do século para se tratar da dependência química que o assolava desde a época na Espanha. O que facilitou a internação de Maradona em Havana foi sua admiração pelo socialismo cubano, disse o médico Alfredo Cahe, que cuidava do craque. Na época, Diego estava afundado na cocaína e teve uma overdose no Uruguai. O cardiologista Carlos Alvarez chegou a antecipar a morte de Maradona, cujo coração funcionava com apenas 38% da capacidade em 2000.
Fidel Castro estendeu a mão ao jogador quando ele mais precisava. Maradona, sempre exagerado, agradeceu a altura. A autobiografia que escreveu,“Yo soy el Diego de la gente”, é dedicada a Castro e ao povo cubano. Nele, Maradona conta que ensinou Fidel – que, como bom caribenho, preferia o beisebol ao futebol – a trocar alguns passes no Palácio da Revolução. E a gratidão não parou aí. Além da tatuagem de Che Guevara que carrega no braço direito, Maradona marcou o rosto de Castro na perna esquerda mais famosa do mundo.
A inspiração guevarista sempre acompanhou o craque. Leu o livro “A Guerra de Guerrilhas” – escrito por Che em 1960 – e desde então passou a usar um relógio em casa pulso. Embrenhado na selva da Sierra Maestra cubana, Ernesto Guevara de la Sierna se preocupava demais com a passagem do tempo e com o fuso horário. É quase impossível achar uma foto de Maradona em que ele não esteja empunhando quatro ponteiros. Foi, inclusive, garoto de propaganda de uma famosa joalheria.Outro argentino modelo para Maradona foi o Papa Francisco. Na autobiografia, Diego criticou o Vaticano e o pontífice João Paulo II pelas luxuosas instalações banhadas a ouro na Praça São Pedro. Bergoglio operou o milagre de reaproximarel Diez de Deus. Em uma das visitas ao Papa, Maradona disse ser fã número um e capitão do time de Francisco.
Assim como o compatriota Padre Santo, Diego foi um grande militante da causa palestina. Na Copa da Rússia, em 2018, Maradona se encontrou com o presidente Mahmoud Abbas e disse ser palestino de coração. Dieguito condenou bombardeios israelenses em territórios árabes e foi contra amistosos entre as seleções da Argentina e de Israel em assentamentos sionistas ilegais. Em 2014, chegou-se a especular o nome do argentino como treinador do selecionado palestino que pela primeira vez se classificou para a Copa da Ásia. Apesar de ter ganhado um kufiyya e de bradar “viva Palestina”, acabou por não assinar com a seleção.
Pode-se dizer, com certa precisão, que o pugilista Muhammad Ali foi, na luta contra o racismo, tão ativista quanto Maradona. Ayrton Senna, no automobilismo, também levantou bandeiras importantes para além do esporte. Pelé, quando marcou o milésimo gol, clamou pelas crianças. Wladimir, Zenon, Sócrates e Casagrande pediam democracia em plena ditadura militar brasileira.
Nenhum deles, porém, impactou tantos seguidores quanto El Pibe de Oro de Fiorito. Maradona perdeu a luta para Diego. Mas Diego Maradona lutou por tantos. Político algum militou por tantos povos e países como ele. Foi embaixador das causas justas e sempre advogou por quem acreditava ser o mais fraco. De Buenos Aires a Jerusalém e de Sinaloa a Nápoles, atraiu multidões de rebeldes apaixonados como dificilmente outra celebridade aglomeraria. A idolatria é tanta – até fora da Igreja Maradoniana – que, no país mais católico do mundo, o Estádio São Paulo passará a se chamar Diego Armando Maradona: El D10S desbancou até o Apóstolo.
Maradona inspirou como Guevara e envaideceu-se como Fidel. Emocionou como Piazzolla e discursou como Perón. Desvirtuou-se como Escobar e amou como Neruda. Militou como García Márquez e morreu, de certo modo, como Getúlio. Com paixões, contradições, virtudes e vícios: Diego Armando Maradona é um grito latino-americano.