A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
Saúde®: o dilema ético das patentes de medicamentos
Até que ponto a busca insaciável pelo lucro se
sobrepõe à necessidade dos doentes?
Bruno Araldi, Gabriela Blasi de Andrade e Richard
Gomes
Não é necessária uma análise aprofundada para
perceber que o setor farmacêutico é, antes de qualquer coisa, um grande e
poderoso conglomerado capitalista que visa o maior lucro possível na venda de
medicamentos - independente do que precise fazer para alcançá-lo. As indústrias
farmacêuticas sediadas em países desenvolvidos utilizam de sua influência junto
ao governo – representada em grande medida por doações às campanhas políticas e
a pela contribuição substantiva no Produto Interno Bruto (PIB) – para proteger
seus interesses, especialmente no que tange à propriedade intelectual. Em
países em desenvolvimento, como o Brasil, o reconhecimento de patentes aliado
ao menor nível de desenvolvimento do setor e às frequentes crises de saúde
pública aumenta a dependência nacional por drogas importadas, fato que encarece
sua obtenção e consequentemente inviabiliza seu acesso universal.
A criação da Organização Mundial do Comércio
(OMC) em 1994 representou a institucionalização de uma nova ordem monetária e
comercial baseada em princípios neoliberais. Os Estados Membros da organização
assinaram uma série de acordos multilaterais, dentre eles o Acordo sobre os
Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio
(Acordo TRIPS – Agreement on Trade-Related
Aspects of Intellectual Property Rights), o qual estabeleceu a obrigatoriedade de reconhecimento da propriedade
intelectual para todos os campos tecnológicos, incluindo o setor farmacêutico.
Assim, a partir do Acordo, a proteção de suas
patentes das indústrias de medicamentos para além das fronteiras de seus países
sedes adquiriu a chancela da OMC, garantindo-lhes mais segurança para estipular
preços acima dos custos marginais e obter lucros sem temer a concorrência de
cópias mais acessíveis. Em outras palavras, o Acordo acabou por possibilitar o
aumento exorbitante dos preços dos medicamentos, prejudicando os países em
desenvolvimento dependentes de sua importação, e fortalecendo as oligarquias
farmacêuticas com sede em países desenvolvidos.
Não são raros os exemplos de como a indústria
de medicamentos usa a garantia de patentes para manipular preços a fim de
maximizar lucros. Um caso emblemático é o do Daraprim (nome comercial para a
droga pirimetamina), medicamento
utilizado no combate a infecções causadas por parasitas, especialmente
perigosas para pessoas com o sistema imunológico enfraquecido – como é o caso
de portadores do vírus HIV. Sua patente foi comprada em agosto de 2015 pela Turing Pharmaceuticals, então dirigida
por Martin Shkreli. Após a aquisição da propriedade intelectual da droga, seu
preço saltou de U$13,50 para U$750,00, representando um aumento de mais de
5000%. Seguiu-se imediatamente uma crise nos hospitais que utilizavam o
medicamento em coquetéis contra o vírus HIV. Entidades como Infectious Diseases Society of America e
HIV Medicine Association manifestaram
repúdio ao aumento dos preços, alegando ser injustificável e insustentável para
o sistema de saúde. Em resposta, a empresa alegou acreditar que o aumento não
causaria impacto no sistema, por se tratar de um medicamento “de uso não tão
comum”. O flagrante desinteresse da empresa causou grande revolta nos Estados
Unidos, ainda mais após a declaração de Shkreli de que o aumento dos preços
tratava-se de "nós tentando permanecer no negócio" e que era uma
medida necessária para que “melhores tratamentos fossem desenvolvidos”.
Inevitavelmente, pacientes que necessitam do medicamento terão que procurar
tratamentos alternativos, correndo o risco de não obter a mesma eficácia.
Martin Shkreli, ex-CEO da Turing Pharmaceuticals
No
Brasil a mesma droga é fabricada e patenteada pela Farmoquímica S/A, e é vendida pelo preço de R$ 7,00, não dependendo
assim da droga norte-americana produzida pela Turing Pharmaceuticals. No entanto, nem todos os países são capazes
de suprir as próprias demandas internas por medicamentos e, com certeza,
enfrentariam problemas sérios de saúde pública se empresas como a Turing tivessem liberdade absoluta sobre
os preços no comércio de remédios.
Felizmente,
o Acordo TRIPS permite que os países signatários incluam em suas legislações
algumas salvaguardas que possam garantir proteção à saúde pública. As
principais flexibilidades previstas no Acordo TRIP são: licença compulsória
(artigo 31) – licenciamento de companhias ou indivíduos a usar, vender ou
importar produtos patenteados sem autorização do detentor da patente –,
importação paralela (artigo 6), exceção Bolar (artigo 30) – permissão para que
terceiros, que não o titular da patente, iniciem o processo de pesquisa e
registro de um medicamento antes de sua patente expirar –, uso experimental
(artigo 30) e atuação do setor da saúde nos processos de análise de pedidos de
patentes farmacêuticas (implícita no artigo 8).
Em
2000 o governo brasileiro se opôs aos laboratórios estadunidenses, quando
demandou o direito de override
(passar por cima) da exclusividade de comercialização e produção (market exclusivity) de medicamentos
usados no tratamento do HIV, utilizando-se do argumento de que o bem-estar
público deveria prevalecer sobre o lucro. Foi decretado pelo Ministério da
Saúde do Brasil um congelamento dos preços dos medicamentos para o tratamento da
AIDS, medida que visava forçar as indústrias detentoras de patentes a diminuir
os seus preços. Do contrário, o artifício da licença compulsória previsto no
artigo 68 da Lei 9279/96 – Lei de Propriedade Industrial responsável pela
internalização das regras de direito internacional estabelecidas no âmbito do
Acordo TRIPS - seria colocado em prática. O governo dos Estados Unidos recuou e
negociou uma solução amigável com o governo brasileiro, evidenciando o temor de
que o Brasil utilizasse desse artifício e abrisse precedentes para que outros
países em desenvolvimento fizessem o mesmo.
Questões referentes à saúde tomaram, entre
outros temas, atenção especial na Rodada Doha de negociações da OMC, o que
levou em 2001 à "Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde
Pública". Nela, reafirmou-se a importância da proteção à propriedade
intelectual como fator para a produção de novos medicamentos, embora tenha se
afirmado expressamente que o Acordo TRIPS não impede nem deve impedir que os
Estados signatários adotem medidas de proteção à saúde pública.
É
certo que a criação da OMC e a posterior assinatura do Acordo TRIPS geraram uma
grande polêmica em relação à postura das empresas farmacêuticas, no que
concerne ao conflito lucro versus ética.
Apesar da formalização de mecanismos para a prevenção de tais abusos e de uma
pressão pela redução dos preços ou negociação de licenças voluntárias, não há
ainda garantias de que os países desenvolvidos, em nome de suas grandes
corporações, não buscarão meios oblíquos de manter tais práticas - mesmo com o
discurso da liberalização dos mercados. Segundo o advogado e economista Carlos
M. Correa, professor da Universidade de Buenos Aires, a tendência é que a
controvérsia ainda se mantenha conforme os países desenvolvidos buscarem
proteção fora do TRIPS e através de acordos bilaterais, bem como ao combaterem
ou bloquearem a concorrência dos genéricos. Apesar dos esforços representados
pelos artifícios de flexibilização do TRIPS e pela atuação de países em
desenvolvimento na OMC, ainda não há um analgésico efetivo para o combate a
ânsia insaciável por maximização de lucros no sistema internacional
contemporâneo.
Fontes consultadas:
CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS R. Acesso a Medicamentos e
Propriedade Intelectual no Brasil: Reflexões e Estratégias da Sociedade Civil.
OLIVEIRA M. F. O contencioso Brasil x Estados Unidos sobre patentes
farmacêuticas na OMC.
CARVALHO P. L. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual: a
Relação da Patente Farmacêutica com o Acesso a Medicamentos.
COSTA J. A. F. Do GATT à OMC: a perspectiva neoliberal institucionalista.
FANG, J. (2015). This Guy Just Raised The Cost
Of An HIV Drug By 5000%. IFLSience. Disponível em: <http://www.iflscience.com/health-and-medicine/price-parasite-fighting-drug-jumps-1350-750-pill> Acesso em: 30 abr. 2016.
CORREA, C. M.
O Acordo TRIPS e o acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento. Sur,
Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, 2005, vol. 2 no. 5.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000200003> Acesso em: 30 abr. 2016.
IV Conferência
Ministerial da OMC, Doha, 2001. Declaração Sobre o Acordo de TRIPS e Saúde
Pública (versão em português). Disponível em: <http://bioeticaediplomacia.org/wp-content/uploads/2013/10/Declaracao-sobre-o-Acordo-de-TRIPS.pdf> Acesso em: 02 mai. 2016.
G1 Bem Estar,
2015. Remédio que teve aumento de 5.000% nos EUA mantém preço no Brasil.
Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/09/remedio-que-teve-aumento-de-5000-nos-eua-mantem-preco-no-brasil.html> Acesso em: 02 mai. 2016.
INPI -
Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, 2015. DECRETO No 1.355, DE 30 DE DEZEMBRO DE
1994. Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio (versão em português). Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf> Acesso em: 02 mai. 2016.
Referência das Imagens:
Nenhum comentário:
Postar um comentário