Artigo apresentado na disciplina de Política Externa Brasileira, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, ministrado pela Profa Dra Janiffer Zarpelon. As opiniões retratadas no artigo pertencem aos autores e não refletem o posicionamento da instituição.
A miséria econômica haitiana é um
fator comum ao imaginário popular dos cidadãos de todo o globo, sendo ainda
mais presente no do povo brasileiro. O documentário “O Dia em que o Brasil
Esteve Aqui”, de Caíto Ortiz e João Dornelas, mostra a realização de um jogo de
futebol amistoso entre as seleções do Haiti e do Brasil em 2004, em nome da
“pacificação” do país num contexto pós golpe de Estado (pautado na ineficácia e
em denúncias de corrupção contra o governo da época) que encurtou o mandato do
presidente Jean-Bertrand Aristide. O jogo supracitado ocorreu sob a égide da
MINUSTAH, missão de paz da ONU que objetivava estabilizar a região, como uma
forma de aplicação da diplomacia cultural brasileira, já que a própria posição
do Brasil como líder da missão se deu por suas relações culturais ricas com o
povo haitiano e pela admiração dos cidadãos deste pelo tradicional futebol
daquele, tal como evidenciado pelo documentário.
Em
1793, o Haiti foi o primeiro país a abolir a escravidão no continente americano. Este fato se deu como
consequência direta da Revolta de São Domingos, fantasma que assombra os
europeus, de certa forma, até os dias de hoje. O líder expoente da revolta
constituiu-se na figura de Toussaint L’Ouverture, vencedor contra as três
maiores potências da época. O medo do denominado haitianismo, à época, era
generalizado, as elites das colônias americanas temiam a exportação dos ideais
da revolução dos escravos para o resto do continente. A segunda colônia
americana a atingir sua independência, atrás apenas dos Estados Unidos, o fez
por meio da abolição e pela consequente tomada de poder pelos escravos, agora
livres. Este precedente precisava ser contido e isolado, sendo exatamente o que
fizeram as grandes metrópoles, estigmatizando o Haiti como o inimigo dos
regimes coloniais. Até mesmo revolucionários vizinhos voltaram-se contra o
país, como Simon Bolívar, prejudicando seu próprio movimento de
pan-americanismo, excluindo o Haiti do Congresso do Panamá. O ocorrido expôs a
hipocrisia que rondava vocais oposicionistas da escravidão que, por trás das
cortinas, se debruçavam sobre os espólios da exploração do trabalho africano.
As
consequências da Revolução Haitiana seriam sentidas até o século XXI. Mesmo
resistindo às tentativas de agressão estadunidenses no início do século XX,
tornou-se impossível para o Haiti manter longe a dominação econômica daquele
sobre este. Em meados do breve século de Hobsbawm, os EUA conseguiram implantar
a dinastia Duvalier no poder haitiano, estabelecendo uma ditadura de 30 anos
que desmantelaria a economia do país, colocando-o na posição de mais pobre do
continente. Aristide foi eleito após uma revolta popular que derrubou a
ditadura de Duvalier, e logo seria derrubado por um golpe militar. Após
refugiar-se nos EUA, Aristide retorna ao Haiti e, em 2001, volta ao poder.
Desta vez, coloca em prática políticas austeras e reprime duramente movimentos
populares, desestabilizando o regime político do país. Neste contexto, EUA e
França invadem o território haitiano e depõe o presidente.
A
turbulência do início dos anos 2000 reavivou os temores em relação ao Haiti. A
MINUSTAH tem por objetivo apaziguar os espíritos dos haitianos. O jogo de
futebol organizado entre as seleções das duas nações tem um objetivo claro:
amenizar as tensões entre grupos de um povo extremamente pobre com um país
desestabilizado. Com a ocupação militar regida pela ONU e encabeçada pelo
Brasil, fica evidente que a intervenção externa continua sendo a regra para a
região, numa situação em que uma potência mutuamente causa um problema e
oferece uma solução temporária e ineficaz, mantendo a situação de crise
constante, evidenciada por Milton Santos. A autoridade exercida pelo Brasil,
porém, possui uma faceta velada, disfarçada de auxílio e implementada pela
cultura, um tipo de autoridade muito mais difícil de se combater do que a
tirania evidente, militar ou econômica.
Não
obstante a aproximação entre os dois países por meio do jogo, as distâncias
intrínsecas entre a miséria e a riqueza são explícitas. Ronaldo, Roberto Carlos
e Ronaldinho Gaúcho montam seus cavalos de metal, tanques de guerra que os
protegem do povo descontrolado. Entram em campo, ganham de 6 a 0 de uma seleção
completamente sem preparo ou incentivo e saem, vão embora, encurtando ao máximo
sua permanência em território haitiano. A catarse generalizada que dominou a
população local é bruscamente assassinada, deixando um gosto amargo em suas
bocas.
O
documentário, fugindo à noção de neutralidade, trabalha com estruturas
significantes expressivas, demonstrando as características paradoxais da ação
brasileira na região. O desejo por um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU é o guia da atuação brasileira no Haiti. A filmagem ocorreu
durante o acontecimento, o que permitiu aos diretores captarem todo o processo
de construção de uma expectativa, o entorpecimento causado pela transcendental
experiência do momento do jogo e, logo após, o mergulho de volta à realidade. A
contextualização espacial do filme é extremamente importante para a qualidade
do produto final, que parece denunciar uma realidade calcada no binômio do
domínio e da impotência.
A
esperança da realização do Jogo da Paz era de que, por meio de uma
identificação cultural, como a paixão pelo futebol, o povo haitiano ignorasse
as relações existentes entre a sua situação de miséria, a intervenção
internacional e a presença militar brasileira em seu território. No entanto,
nas filmagens do próprio documentário estão presentes declarações
emancipatórias, previsões de um Haiti que se renovaria com os próprios braços.
Os haitianos pagam, até hoje, pelo pecado de terem lutado e derramado sangue
por sua independência, por terem quebrado, com suas mãos, as correntes que os
escravizavam. Antes, no século XVIII, eram considerados criminosos por
executarem seus colonizadores. Hoje, são os miseráveis que sustentam os desejos
filantrópicos dos países mais ricos. O poder do futebol é inquestionável pela
ótica do documentário, mostrando o potencial de soft-power que o Brasil possui. A escolha do Brasil para liderar a
MINUSTAH foi estratégica, percebendo-se que a influência cultural seria muito
mais efetiva para controlar a efusividade do povo haitiano do que a intervenção
direta. É fulcral a compreensão de que a atuação da ONU e do Brasil não é
desinteressada ou neutra e, em “O Dia em que o Brasil Esteve Aqui” este fato é
trazido à luz. A memória da subversão de São Domingos continua aterrorizante
para quem tem medo da liberdade autônoma e concreta.
Referência:
Zizek, Slavoj. Primeiro Como Tragédia, Depois Como Farsa. São Paulo: Boitempo, 2011. Dubois, Laurent. Avengers of The New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2009.
Carvalho, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
* Otávio Bomfim: aluno do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba.
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