A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
O Caso da Guerrilha do Araguaia e a Decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Diego Silvi, Fabiane Levisky, Franciele dos Anjos e Gabriela Albini
A
partir de 1964, com a implantação da ditadura militar no Brasil, alguns
movimentos de esquerda, perseguidos e excluídos da cena política formal,
passaram a se radicalizar em vistas de oferecer respostas ao regime vigente por
meio da luta armada. Tais movimentos foram brutalmente reprimidos pelo Estado,
de forma que, à época, o cidadão comum sequer chegava a tomar conhecimento de
sua existência. Nem todos os traços, no entanto, foram apagados, e alguns casos
passaram a ser descobertos e visibilizados após a redemocratização do Brasil,
por iniciativa de familiares dos combatentes. Um caso emblemático é o da
Guerrilha do Araguaia, que resultou nos anos 2000 na primeira condenação do
Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos relativamente à ditadura.
O
projeto que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia teve início em 1966, quando
cerca de setenta militantes do Partido Comunista do Brasil, já banido à
ilegalidade, dirigiram-se para a área conhecida como Araguaia, por conta do rio
que por ali passava, localizada entre os
estados de Goiás, Maranhão e Pará. Tinham como objetivo fundamental a
implantação do socialismo no Brasil por meio da luta armada, aos moldes das
Revoluções Chinesa e Cubana, e para tanto visavam organizar-se em um local longe
do centro do poder público e conscientizar os locais para que aderissem à
causa. Conforme camponeses da região também aderiam ao movimento, chegaram a
somar cerca de noventa militantes no Araguaia.
A preparação para a execução da guerrilha foi feita entre 1970 e 1973. Durante esse período, ocorreram cerca de seis operações das forças armadas nacionais com o objetivo de colocar um fim ao movimento, objetivo que foi conquistado. Até o final de 1973, todos os integrantes da dita guerrilha foram dizimados pelas operações. Dessa forma, o nome “guerrilha” é pouco apropriado, posto que a luta armada do Araguaia nem mesmo foi colocada em prática.
Os
militantes da causa foram executados onde se encontravam e muitos corpos ainda hoje
ainda não foram encontrados. Vale lembrar que todas essas ações militares eram
feitas em silêncio, em nenhum momento sendo citadas na imprensa, não tendo sido
a guerrilha de conhecimento popular, apenas tornando-se pública anos após o fim
da ditadura e por iniciativa da sociedade civil. No caso em questão, metade dos
guerrilheiros foram executados quando estavam sob a tutela do poder público, ou
seja, quando estavam sob custódia dos militares, não mais carregando armas.
Os militantes do Araguaia foram torturados, mortos, tiveram sua liberdade de expressão e suas garantias judiciais negadas e vários outros direitos humanos violados. Como será visto mais adiante, segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura, a exemplo de alguns dos perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia, são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis, cujos julgamentos não podem ser obstados pelo decurso do tempo, bem como por dispositivos normativos de anistia.
Com
o fim da ditadura militar no Brasil, muitos familiares dos guerrilheiros
desaparecidos passaram a buscar informações sobre eles, sem obter qualquer
resposta do Estado. O motivo para tal abstenção era a Lei da Anistia de 1979, pela
qual eram anistiados todos que cometeram crimes políticos, eleitorais ou
conexos a estes entre 1961 e 1979, a exemplo do extermínio promovido pelos
militares no Araguaia, cujo caso não era passível de julgamento e, assim, não
motivava investigações públicas. Só anos depois é que os familiares das vítimas
descobriram que os militantes tinham sido mortos e que seus corpos nunca tinham
sido encontrados, e o fizeram por iniciativas próprias.
Os
parentes dos militantes entraram, em 1982, com uma Ação Civil contra a União, buscando
informações mais precisas, mas sem qualquer êxito. Como resposta, entraram em
contato, em 1995, com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, e, com
sua assistência, denunciaram a abstenção do Estado brasileiro à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. O fundamento da Comissão ao acatar o caso
foi a ausência de resposta pelo Estado quanto ao pedido dos familiares entre
1982 e 1996. Sua competência é baseada na Convenção Americana dos Direitos
Humanos, ratificada pelo Brasil em 1998.
O
Estado brasileiro rechaçou todos os pedidos feitos pela Comissão, entre 2001 e
2007, requerendo o arquivamento do caso, usando como base as obrigações
decorrentes da Lei da Anistia. Frente às negativas do Estado, a Comissão
finalmente submeteu o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, cuja jurisdição é também aceita pelo Brasil desde 1998. A Comissão
indagou, fundamentalmente, sobre a compatibilidade da Lei da Anistia com a
Convenção Americana de Direitos Humanos, e também sobre a existência de
violações de diversos artigos do referido tratado, como do direito à vida e à
proteção judicial. O caso foi nomeado “Gomes Lund e outros vs. Estado
Brasileiro”.
O
Estado brasileiro
alegou perante a Corte que esta não seria competente para analisar o caso e que
não teria havido esgotamento de recursos internos de julgamento, requisitos
necessários para qualquer julgamento na instância. Ambos os argumentos foram
negados, mas o primeiro merece especial destaque. Quando da ratificação da
Convenção, em 1998, o Brasil fez a ressalva de que os crimes de tortura e
execução de pessoas só poderiam ser analisados se ocorressem depois daquela
data, argumento levantado no caso Araguaia. A Corte respondeu que fatos
envolvendo desaparecimento forçado de pessoas constituem espécie de sequestro,
cuja consumação se propala pelo tempo, sendo, assim, crime permanente, não se
aplicando a ressalva.
Em
novembro de 2010, analisadas todas as provas e defesas, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos proferiu sua sentença. Os principais pontos proferidos foram: a)
as disposições da Lei da Anistia que
impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são
incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos; b) o
Estado foi responsável pelo desaparecimento forçado e, em decorrência, pela
violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à
integridade pessoal e à liberdade pessoal; c) o Estado descumpriu com sua
obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, haja vista a
interpretação e aplicação dada à Lei da Anistia; e d) por afetar o direito de
conhecer a verdade e de buscar e receber informação, o Estado violou o direito
à liberdade de pensamento e de expressão.
Em
decorrência dos achados, foram impostas uma série de obrigações ao Estado, cabendo
especial destaque à de conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do
caso e determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar
efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja. É dizer: investigar
apropriadamente o ocorrido no Araguaia e punir seus responsáveis. Tal obrigação
segue sem ser cumprida, com o Estado usando como fundamento a Lei da Anistia.
Paralelamente,
um caso dentro do Brasil melhor esclareceu a posição nacional, em absoluto
descompasso com o achado da Corte de que as disposições da Lei da Anistia
brasileira são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos.
A
OAB ingressou, em 2008, com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) no Supremo Tribunal Federal, pedindo a anulação parcial da Lei da
Anistia de 1979. O STF decidiu, por sete votos a dois, contra a revisão da Lei,
mantendo o perdão a todos os crimes políticos da ditadura, colocando os
torturadores no mesmo patamar que os torturados. Cabe destacar que, além do
Judiciário, o Executivo reafirmou a decisão do Supremo, tendo a Advocacia-Geral
da União defendido, durante o processo, o mesmo entendimento que viria a ser
adotado pelos ministros.
Ainda
mais infeliz que a decisão da ADPF foram as posteriores opiniões expressas por
ambos os poderes com relação à decisão da Corte Interamericana. Segundo o então
presidente do Supremo, Cezar Peluso, a decisão da Corte “não revoga, não anula,
não caça a decisão do Supremo [...] provoca efeitos [somente] no campo da
Convenção”. Para o ministro Marco Aurélio, a decisão da Corte “pode [apenas]
surtir efeito ao leigo no campo moral”. O Advogado-Geral da União disse que “o
Brasil não está obrigado a cumprir decisões da Corte Interamericana”. As
infelizes opiniões trouxeram várias manifestações contrárias por parte de
juristas e da sociedade civil. Com elas, parece justo dizer, o Estado
brasileiro reafirmou sua falta de compromisso tanto com o Direito Internacional
como um todo quanto com os direitos humanos.
Por
fim, merece nota o fato de que, quarenta e dois
anos após a sua adoção no âmbito internacional, o Brasil permanece sem a devida
ratificação da Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos
Crimes de Lesa-Humanidade, não obstante tê-la assinado. Teoricamente, essa
falta de ratificação é superada, pois, como entendeu a própria Corte
Interamericana, a sua observância obrigatória decorre do costume internacional,
e não exclusivamente de tratados. A doutrina chega a reconhecê-la como jus cogens, não passível de não
reconhecimento por Estados individuais. Como visto, no entanto, tais
entendimentos não afetam em muito a prática do Estado brasileiro.
Assim,
é prudente reafirmar que a jurisprudência,
o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de
direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de
prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado
cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade, por
serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo agredido, nas memórias
dos componentes de seu círculo social e nas transmissões por gerações de toda a
humanidade. Em similar sentido, afirma expressamente a Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados, da qual o Brasil é parte, que nenhuma norma de direito
interno pode justificar descumprimento de obrigação decorrente de tratado, tal como
a Convenção Americana dos Direitos Humanos, sendo inaceitável a posição do
Estado brasileiro adotada no caso da Guerrilha do Araguaia.
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