A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2017 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.
O conflito na península coreana: a divisão de um povo uno
Alexandre Gavronski *
Durante a maior parte da primeira metade do século passado a península coreana esteve na mão dos japoneses. Oficialmente, a anexação da Coreia (que ainda era unificada) pelo Império Japonês ocorreu no ano de 1905, com a instauração forçada de um protetorado, ocorrendo em 1910 a anexação formal ao império. Esta situação teve duração até o ano de 1945, momento em que se deu a rendição completa do Japão ao final da Segunda Guerra Mundial.
Após o Japão ter sofrido, em seu território natal, o primeiro ataque atômico do mundo, no dia 6 de agosto de 1945, era preciso derrotá-lo em seus territórios colonizados mais próximos da metrópole: a região da Manchúria (que era um Estado fantoche) e, logo abaixo dela, a península coreana, considerada até então oficialmente território japonês. Para que isso acontecesse, a União Soviética declarou guerra ao Japão no dia 9 e agosto daquele ano, e prosseguiu a liberar a Manchúria, mas principalmente a península coreana, com o objetivo de retirar a administração territorial da mão dos japoneses locais e devolvê-la para os membros das comunidades originárias.
Foi acordado entre a União Soviética e os Estados Unidos que os exércitos em questão deveriam se encontrar ao paralelo 38, que cortava a península ao meio. A URSS deveria proceder invadindo do norte para o sul (a partir da Manchúria) e os Estados Unidos invadir a península de sul em direção ao norte. A vitória contra os japoneses foi um sucesso, e foi definido entre as potências que por aproximadamente 5 anos haveria uma administração conjunta EUA-URSS da região. A população coreana nativa, cansada de anos de administração alheia de seu próprio povo e destino, revolta-se e exige sua tão desejada independência e autodeterminação.
Com zonas de influência das grandes potências muito bem determinadas, ao norte os comunistas obtiveram suporte da União Soviética, enquanto que ao sul a administração militar estadunidense proibiu manifestações e greves. Dentro deste contexto, a administração conjunta EUA-URSS estava começando a falhar, principalmente devido às pretensões regionais que cada uma das duas maiores potências mundiais tinha para a região, dando suporte governamental e militar para o lado que lhes era conveniente, tanto no sul quanto no norte.
Quando percebido o empecilho, os Estados Unidos, que tinha plena influência no âmbito da ONU, convoca tal organização internacional no intuito de realizar eleições para a formação de um congresso independente. A União Soviética, que não confiava na suposta livre atuação da ONU, recusa-se a participar, alegando não confiar na imparcialidade da organização internacional. Os Estados Unidos insistem no fato, e com o controle social da ONU às mãos, determina que as eleições ocorreriam de qualquer maneira no sul da península, que ocorreu em maio de 1948. A URSS e o norte, seguindo o exemplo, realizaram eleições alguns meses depois.
A partir do ano de 1948, existiam, portanto, dois governos diferentes para o mesmo território, ambos reclamando o controle total de território sob a sua jurisdição. Acreditando que os Estados Unidos não teria interesse em defender o território ao sul do paralelo, Kim Il Seong, que era o líder dos revolucionários comunistas que detinham o poder ao norte, definiu com a União Soviética que iria invadir o sul. A União Soviética consentiu afirmando, porém, que não tinha interesse em um conflito direto com os Estados Unidos, e por este motivo não enviaria tropas. Porém, certificou que as tropas revolucionárias chinesas de Mao Zedong dariam auxílio na invasão.
A guerra que se seguiu foi essencialmente uma guerra civil, mas com apoio de grandes potências por trás dos panos oficiais, e significou mundialmente um conflito decisivo. Tanto Estados Unidos quanto União Soviética já detinham de um arsenal considerável de bombas atômicas, o que explica os motivos de Stalin não querer envolvimento direto com os Estados Unidos na guerra.
A guerra civil foi um desastre humanitário. O número de militares mortos no total está na faixa de 1,2 milhão, se contar o número de civis mortos, tanto norte quanto sul coreanos, que fica na mesma faixa. No total, tratou-se de um conflito com quase 2,5 milhões de mortos, que por pouco não se escalou em um conflito com uma escala muito maior do que começou. Territorialmente, o conflito armado terminou como começou, com uma divisão das forças na região do paralelo 38, com períodos em que o norte quase dominou toda a península, fato este que o sul também conseguiu. Contudo, as crescentes reações violentas fez com que a guerra se estabiliza-se, por conta de um poder militar muito parecido nos dois lados.
O conflito entre norte e sul nunca acabou oficialmente, e continua até os dias de hoje. O que teve fim foi o conflito armado, resultado de um armistício entre as duas partes assinado em Julho de 1957, que criou a Zona Desmilitarizada da Coreia, uma faixa que atravessa a península ao meio, tendo 250 quilômetros de comprimento e 4 quilômetros de largura. Dentro desta área, ocorrem negociações recorrentes que servem para a manutenção do conflito. Embora tenha o nome de desmilitarizada, é provavelmente uma das regiões do globo com o maior nível de securitização já visto na história humana, sendo vigiada incessantemente, principalmente nos últimos anos com a procura do norte em desenvolver uma bomba atômica com tecnologia indígena.
Cada lado lida com a Zona Desmilitarizada de maneira diferente. O norte, por ser um regime militar extremamente autoritário, não dá liberdade a seus cidadãos de a visitarem livremente. Com tensões crescentes na região, as maneiras de se lidar com a situação variam e chegam até a serem criativas, como o sul respondendo com um teste nuclear do norte não com armas e demonstrações militares, mas com a transmissão de música pop coreana, denominada k-pop, a partir de auto falantes gigantescos, como uma forma de protesto social, já que os habitantes do norte são proibidos de consumir qualquer tipo de cultura proveniente do sul da península.
O conflito está longe de acabar. Pode-se dizer que é o único conflito existente no século XXI que tem suas raízes diretamente no contexto político da segunda guerra mundial. O aparente congelamento desta problemática é pura ilusão, pois constantemente existem negociações e conversas entre o sul e o norte, mas o problema maior é a insistente ação militar norte-americana na região sul da península, que desde o armistício incita desconfiança entre as partes e dificulta um diálogo nativo sobre o problema, pois priorizam-se questões econômicas e geopolíticas de grandes potências globais, não apenas os Estados Unidos, mas também a China e a Rússia (herdeira das condições políticas da União Soviética). Para o fim do conflito, é necessário uma autonomia das partes diretamente envolvidas, e um diálogo transparente entre as potências. Basta esperar a boa vontade dos grandes líderes mundiais.
*Alexandre Gavronski é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), e membro do grupo de pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".
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