quinta-feira, 9 de junho de 2011

Gaddafi, Strauss-Kahn e Saddam: o que eles têm em comum?

Ian Rafael

A crise de 2008 trouxe à tona mais do que discussões sobre déficits orçamentários, austeridade e pacotes de socorro aos países mais necessitados, muitos deles no chamado “primeiro mundo”. Ela tornou mais forte a crítica ao dólar como moeda de reserva internacional e de base para a fixação de commodities. A crise valorizou as moedas dos países em desenvolvimento causando dificuldades na exportação desses países e pressionando a inflação, ou seja, uma causa não-direta da crise. Na reunião do G-20 na Coreia do Sul em novembro de 2010, Guido Mantega, ministro da Fazenda, defendeu a criação de uma cesta de moedas que desse lugar ao dólar como divisa-referência nas negociações.
Tal cesta já existe e vinha sendo fomentada pelo ex-presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, como um possível substituto ao dólar. O SDR, Special Drawing Rights na sigla em inglês, é: “um ativo de reserva internacional criada pelo FMI em 1969 para completar as reservas dos seus países membros oficiais. Seu valor é baseado em uma cesta de quatro principais moedas internacionais, e SDR podem ser trocados por moedas livremente utilizáveis.”[1]
Essas quatro moedas são: o dólar, o euro, a libra britânica e o iene e elas compõem de forma distinta a SDR, de maneira a representar a utilização em escala global de cada uma delas. O que Strauss-Kahn estava fazendo era converter dólares em SDRs, sendo que o progresso realizado desde 2007, quando ele assumiu a presidência, foi de 6.0 bilhões SDRs em dezembro de 2007 para 65.5 bilhões SDRs em maio desse ano. Ainda mais, o Novo Acordo de Empréstimos, de primeiro de abril aumentou os recursos para 269 bilhões, quando o valor em 31 de março chegava na marca de 120 bilhões, segundo a Reuters[2].
A vontade de fazer o FMI se expandir e ganhar corpo partiu para outras atitudes concretas. O FMI, em 2009, emitiu títulos de SDR pela primeira vez na sua história[3], diminuindo a dependência dos bancos centrais dos principais países frente ao Tesouro norte-americano. A China garantiu cerca de 50 bilhões de dólares, o Brasil 10 bilhões. Outro passo importante na estratégia foi propor que ativos como petróleo e ouro começassem a ser cotados e negociados com base nas SDRs. A estabilidade do sistema monetário internacional poderia ser alcançada pelas SDR devido a volatilidade menos acentuada que essa divisa tem em relação ao dólar, que flutua determinado pelos desígnios da política norte-americana.
Obviamente não é prudente “colocar a mão no fogo” por Strauss-Kahn, nas acusações de assédio sexual que o levaram a cadeia, ainda mais depois de provas de DNA terem sido achadas na roupa da camareira. Entretanto vozes das teorias da conspiração afirmam que o francês teria sido vítima do lobby do dólar, ao tomar as medidas supracitadas, arrefecendo o domínio do dólar[4]. A mensagem seria bem clara, não mexer com o dólar. Interessante notar que o afastamento de Strauss-Kahn pode também ter um efeito catalisador sobre a decadência do dólar. O que comprova isso é a inclusão de nomes provenientes de países emergentes para a sucessão no cargo de presidente.
Passando adiante na lista de nomes do título, voltando pouco no tempo, podemos citar Muammar al-Gaddafi, líder líbio que vê seu país atacado por forças da OTAN desde abril. As causas da guerra são vagas e pouco explicativas. O ponto principal para lançar a ofensiva é a hostilidade que o general Gaddafi usou para dispersar manifestantes quando a Primavera Árabe chegou ao seu país. No entanto é visível a dificuldade em manter esse argumento quando no Bahrein e Síria a repressão é tão ou mais violenta.
Novamente, a questão aqui pode ser o dólar como moeda internacional. Segundo John Perkins, a questão da Líbia não é sobre petróleo e sim sobre moeda e empréstimos[5].  Em seu artigo, Perkins lembra que Gaddafi reuniu-se com membros de países africanos e muçulmanos para estabelecer uma nova moeda para suas transações: o dinar de ouro. Essa nova moeda seria a única forma de estabelecer comércio com países que aceitassem o dinar como seu dinheiro e câmbio. Ou seja, eles iriam vender petróleo e outros recursos para o resto do mundo apenas por dinares de ouro. Alex Newman escreveu no New American que durante o ano passado vários países árabes e a maioria dos países africanos aprovaram a ideia, que foi vista negativamente por EUA e União Europeia. Sarkozy chegou a afirmar que Gaddafi poderia colocar abaixo o sistema econômico mundial[6].
É notável que uma dos primeiros anúncios dos rebeldes de Benghazi referia-se a “designação do Banco Central de Benghazi como autoridade monetária competente em políticas monetárias para a Líbia”. Declaração essa que tira o poder do Banco Central da Líbia, 100% estatal. A Líbia criava seu próprio dinheiro, o dinar líbio, com seus próprios recursos. E o Banco Central da Líbia não era membro do Banco de Compensações Internacionais (BIS na sigla em inglês), o que o livrava da regulamentação internacional[7].
O caso final remonta à Guerra do Iraque, que iniciou em março de 2003 com a invasão norte-americana ao país numa guerra ao terror que não terminou até agora e nem vai terminar tão cedo. A causa da guerra também foi muito debatida à época, mas assim como na Líbia, o fator determinante pode ter sido também uma mudança de política econômica de Saddam Hussein em setembro de 2000[8], que decidiu não aceitar mais dólares nas suas vendas de petróleo, trocando-o por euros[9]. Em junho de 2003, as vendas já haviam sido novamente convertidas para dólar, quando Saddam já não estava mais no poder, após ter sido derrotado pelas forças norte-americanas. Antes da invasão, alertas na forma de sanções foram aplicadas, mas a decisão já estava chegando até a OPEP o que culminou na ofensiva[10]. Medida idêntica adotou Ahmadinejad, presidente iraniano, em setembro de 2009, em mais uma de suas sublevações contra os EUA.
A conclusão que se tira dessas ações individuais é de insatisfação com o sistema, a hegemonia americana e o “privilégio exorbitante” - nas palavras de Barry Eichengreen[11]. Apesar de apontar a decadência norte-americana ser um exagero, é notável que o sistema econômico mundial  pode estar passando por um momento crucial assinalando para reformas. De um lado BRICS e ações dispersas e de outro a superpotência fazendo seu máximo a fim de manter sua posição. O fim disso pode significar um mundo mais seguro economicamente apesar do esforço ainda estar no começo e sem um plano concreto.

Ian Rafael é aluno do 3° período do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba.


[1] http://www.imf.org/external/np/exr/facts/sdr.HTM
[2]    http://in.reuters.com/article/2011/05/17/idINIndia-57083920110517
[3]    http://www.bloomberg.com/apps/news?pid=newsarchive&sid=amDBHW9pdG28
[4]    http://www.youtube.com/watch?v=oSV27b_87nQ, http://www.globalresearch.ca/index.php?context=viewArticle&code=WHI20110519&articleId=24867 e http://curiouscapitalist.blogs.time.com/2011/05/17/will-strauss-khans-fall-lead-to-the-dollars-demise/
[5]    http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17762
[6]    http://vikno.eu/eng/politics/politics/the-deacon-gold-dinar-and-west-aggression.html
[7]    http://blogln.ning.com/forum/topics/a-apressada-demonizacao-de
[8]    http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,998512,00.html
[9]    http://www.rferl.org/content/article/1095057.html
[10]  http://rt.com/news/economy-oil-gold-libya/
[11]  http://mundorama.net/2011/04/27/a-reuniao-dos-brics-e-sua-posicao-favoravel-ao-fim-do-%E2%80%9Cprivilegio-exorbitante%E2%80%9D-norte-americano-por-rodrigo-fagundes-cezar/

           

4 comentários:

  1. Os EUA são exemplares em armar lonas para ver o circo pegar fogo. É até interessante lembrar o filme 'Wag the Dog' do Barry Levinson, que trata das famigeradas "guerras ao terror" norte americanas. Já o caso do Strauss-Kahn chegou também a ser ligado à sucessão francesa, uma vez que sua importância internacional colocava em risco a imponência do Sarkosy.
    Achei muito interessante a análise do contexto e o texto é muito claro em seu raciocínio. Uma boa dissertação.

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  2. O Autor provoca um debate interessante ao fugir da habitual discussão de "inimigos do ocidente". Percebe-se através do texto que os três ousaram ameaçar a economia norte americana ao propor alternativas ao Dollar, e os três cada um na sua maneira acabaram sofrendo os reveses.
    Saddam, acabou morto, num julgamento repleto de viscitudes e obscuridade, ferindo preceitos dos Direitos Humanos como a ampla defesa e o contraditório.
    Gaddafi, até que eu saiba ainda não morreu, mas perdeu toda a sua governabilidade por uma força do ocidente que feriu gravemente a soberania daquela país.
    E Strauss-Kahn, longe de considera-lo um "santo", mas teve um processo com uma celeridade contestável. Num momento político onde ameaçava além da potência da moeda norte americana também a reeleição do atual presidente Sarkozy.
    Merece parabéns ao autor pela ousadia em trilhar este caminho de argumentos, percebo como leigo um bom espaço de pesquisa científica. Sucesso ao amigo Ian.

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  3. Muito bom o artigo e revelou coisas interessantíssimas que a mídia internacional,não mostra,não cita diretamente todos estes fatos e também não revela os motivos pelos quais ocorrem tantas guerras ocidentais no mundo árabe. mas era mesmo de se estranhar,todas estas ações militares ocidentais com um único pretexto de ser o petroléo,causa defendida pelos países atacados e direitos humanos,proteção aos civis,armas de destruição em massa,enriquecimento de urânio etc,defendido pelo ocidente em suas ações militares no mundo árabe. Evidentemente que jamais os USA vão deixar que outra moeda seja superior ao dólar em termos de moeda comercial internacional,mas em contrapartida a OPEP tem autonomia para fazer juízo de valor em relação ao comércio petrolífero no mundo,ou seja criar uma moeda petrolífera para o comércio mundial do mesmo,mas cá entre nós uma das potências petrolíferas da OPEP é aliada de carne e unha dos USA,estou falando da Árabia Saudita,que devem fazer o que os americanos determinam,afinal de contas eles são os maiores compradores de petroléo do Oriente Médio.
    O artigo tem bons argumentos sobre os casos citados em questão,e todos com sentidos,combinações de fatos e acontecimentos reais,se eles "os americanos" falavam e ainda falam que o terrorismo é uma ameaça a paz mundial,eu falo o contrário,eles que são uma ameaça a paz mundial,e eu não tenho dúvidas disso,e me parece uma ameaça infinita,mal termina uma guerra já inciam outra,impressionante quanta bárbarie é praticada por pura ganância e status de poder a nível mundial. Fica a pergunta no ar,até quando vamos ser perseguidos por esta dinastia ideológica americana? de certa forma este modelo econômico imposto pelo dólar e pelas ideologias econômicas americanas afetam todo o planeta e somos obrigados a conviver com a especulação política e econômica ditadas pelo dólar americano.

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  4. A seriedade da análise, ainda mais em se considerando que proferida em texto reduzido, merece ser aprofundada. Sempre cultivei especial carinho pelos "bastidores do poder". Tenho que é fato que muitas respostas se encontram ali, todavia, não serão obtidas. As hipóteses levantadas no texto, bem concatenado e sustentado em nomes de reconhecida capacidade, parecem, no mínimo, provocadoras.

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