Depois de ano e meio de negociação, o Newcastle United, clube de
futebol do norte inglês, foi finalmente comprado por mais de dois bilhões de reais
por um fundo de investimento da Arábia Saudita. A transação reanimou os
debates sobre os modelos de clube na Europa, as diferenças de investimento e
a origem do dinheiro injetado em campo.
Este tipo de negócio não é incomum na Premier League, o “inglesão”. Na
verdade, a tendência é de que cada vez mais os times tenham dono e se
distanciem dos modelos de clubes associativos, comuns no Brasil, na Argentina
e na Espanha.
Na Grã-Bretanha, a maioria dos grandes times já têm mecenas. Embora
a comunidade judaica inglesa seja bastante identificada com o Tottenham, no
norte londrino, o atual campeão europeu Chelsea é de propriedade do russo-
israelense Roman Abramovich desde 2003. A família Glazer, de judeus lituanos
refugiados nos EUA, é dona de 90% do gigante Manchester United e da franquia
de futebol americano Tampa Bay Bucaneers.
No lado azul de Manchester, do novo rico City, é comandado pelo Sheik
Mansour Bin Zayed, o vice-primeiro ministro dos Emirados Árabes Unidos. Do Golfo Pérsico também se administra o Paris Saint-Germain, de Messi, Neymar e
Mbappé. O ex-tenista Nasser Al-Khelaïfi - braço direito do xeique Tamim bin
Hamad Al-Thani, Emir do país que sediará o Mundial FIFA de 2022 – é o
presidente do consórcio catari que detém as ações do badalado time francês.
Inclusive, quando Neymar se transferiu de Barcelona para Paris, o blaugrano
catalão rompeu seu patrocínio com a Qatar Airways.
Se alguns times ainda não têm donos offshore, o dinheiro não raramente
vem de fora. O Atlético de Madri, de modelo associativo, recebeu um grande
aporte financeiro do estado azeri em 2014. Em destaque no fardamento
rojiblanco, naquele ano campeão espanhol depois de uma década de hegemonia
de Real Madri e Barça, havia os dizeres “Azerbaijão, terra do fogo”, em referência
às fartas reservas de gás natural no Cáucaso.
Ruanda, um dos países mais pobres do mundo, estampa a manga do
uniforme do londrino Arsenal desde 2018: “Visite Ruanda”, convida a camisa dos
gunners. Paul Kagame, presidente africano, é um torcedor declarado do Arsenal
e governa Ruanda desde 1994.
Com a frequência de negócios bilionários entre clubes europeus e
governos do Sul global, um neologismo estrangeiro começou a ocupar os
noticiários esportivos e de política internacional. Da justaposição de sports
(esportes) e washing (lavagem), sportswashing foi adicionado no dicionário dos
torcedores. O termo ganhou ainda mais espaço no discurso de militantes de
direitos humanos, que acusam países pouco transparentes de tentar limpar suas
imagens através do esporte mais popular do mundo.
De fato, o grosso do dinheiro que permite que as ligas europeias sejam
as mais fortes do planeta têm vindo de fora. E isto realmente incomoda os que
prezam pela pureza e pela competitividade justa no futebol. No entanto, as
acusações de sportswashing sempre são em cima de países subdesenvolvidos
investindo em potências mundiais, mesmo que no esporte.
Quando o fluxo é o contrário, com investimentos europeus em governos
pobres, não há denúncia de que França e Inglaterra estejam querendo “limpar
suas barras” com as ex-colônias, por exemplo. Muito menos quando a maioria
dos craques que brilham nos gramados da Champions League sejam sul-
americanos, africanos e asiáticos.
O que os países centrais da Europa têm enfrentado no futebol é a prova
e o reflexo de suas próprias práticas expansionistas. É como se estivessem
perdendo um grande catalizador de softpower: se é comum ver uma camisa do
Arsenal no Oriente Médio, como expressão da cultura britânica pelo mundo,
ficará cada vez mais usual o uso de turbantes no Estádio de Wembley.
Na lógica do primeiro escalão da bola, é necessário que africanos
muçulmanos como Sadio Mané e Mohamed Salah suem pelo Liverpool e tenham
seus passes negociados entre clubes europeus, mas inadmissível que um árabe
faça o trabalho intelectual e financeiro do time e lucre em cima disto, pois seria
a consumação do sportswashing.
Não resta dúvida de que a compra do Newcaslte tem muito mais de jogada
geopolítica do príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, do que de
investimento exclusivamente econômico. Estes artifícios e negócios têm sido
feitos pelas grandes potências através do esporte há séculos, mas só agora,
com a partida virando, é que se cria um conceito para condenar quem joga o
jogo de igual pra igual.
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