quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Política e futebol no Egito: um capítulo sangrento


"As bandeiras de Al-Ahly e Zamalek respectivamente, os maiores times egípcios e rivais no futebol, juntas mostrando a união nesse período de contestação ao poder do governo de transição".

por Ian Rafael Flores

O último 25 de janeiro marcou o “aniversário” da revolução no Egito que derrubou o ditador Hosni Mubarak, que permaneceu 30 anos no poder. No entanto a data não significou celebração e movimentações pacíficas no Egito e muito menos na Praça Tahrir, de significado geográfico ímpar para os manifestantes. Isso por que o Conselho Supremo das Forças Armadas, que tomou posse após a queda de Mubarak e é liderado por Mohamed Hussein Tantawi, pouco realizou em relação às medidas democráticas e liberalizantes que a população egípcia clamava (e clama) desde janeiro do ano passado. Dos 27 governadores regionais, 15 foram trocados não por voto popular, mas por indicação; milhares de egípcios foram a julgamento militar fechado; cristãos coptas estão sofrendo perseguição por conta de sua religião; as condições de vida da população pouco mudaram e o Estado de Emergência da Era Mubarak só teve fim no dia 24 de janeiro, muito por conta dos diversos protestos na capital Cairo e pelo interior do país.
Tamanha dificuldade do governo interino ganhou mais um capítulo no dia 1º de fevereiro, quando pelo Campeonato Egípcio de Futebol, em Port Said, o Al-Masry recebeu o Al-Ahly, de Cairo, um dos clubes mais vencedores da África, pelo Campeonato Egípcio de Futebol. Assim como no Brasil, os times no Egito têm torcidas organizadas, que lá são conhecidas como ultras. Assim como no Brasil, a segurança dentro e no entorno dos estádios de futebol, infelizmente, deve ser extrema, para evitar confrontos entre tais torcedores organizados. Apesar de não existir uma grande rivalidade entre Al-Masry e Al-Ahly, o jogo se notabiliza por confusão e necessidade de policiamento reforçado. No entanto a mera presença de militares (que têm parte da incumbência policial nesse período de reforma) e policiais não foi capaz de conter um dos maiores massacres na história do futebol e também do esporte egípcio. Ao apito final do árbitro, a torcida do Al-Masry saiu das arquibancadas tanto em direção dos jogadores do Al-Ahly quanto da comissão técnica do time da capital. Mas o alvo principal eram os ultras do Al-Ahly. Com soldados e policiais parados olhando a barbárie, o caos tomou conta. Quem não conseguiu sair da parte destinada aos visitantes foi atacado e mesmo quem conseguiu fugir teve de contar com a sorte para não morrer. Diversos torcedores foram atirados das arquibancadas para a rua, outros morreram esmagados. Relatos dão conta da presença de armas brancas entre a torcida do Al-Masry, algo incomum devido à repressão policial entre os membros das torcidas organizadas. O saldo trágico de 74 mortes e milhares de feridos levou 3 jogadores do Al-Ahly a anunciarem a aposentadoria, entre eles Mohammed Abou Trika, autor de 18 gols pela Seleção Egípcia e considerado um dos maiores atletas da África. Abou Trika relatou à imprensa que viu torcedores morrerem dentro do vestiário destinado aos visitantes, para onde alguns conseguiram correr. O brasileiro Fábio Júnior, atacante do Al-Ahly e que realizou o gol na partida (que terminou 3-1 para o Al-Masry), não tem intenção de permanecer no Egito, assim como boa parte da comissão técnica do Al-Ahly, que contava com um treinador português e um assistente argentino, que também foram agredidos, mas sem gravidade. O Campeonato Egípcio de Futebol foi suspenso sem data para voltar.
No plano político o Egito foi sacudido novamente por protestos, mostrando a ineficácia do governo de Tantawi e a diminuição da popularidade diante a população, que já questiona o tempo de demora na transição democrática. No meio do turbilhão a condição do governo ficou ainda mais abalada pelo fato dos torcedores do Al-Ahly terem sido expoentes durante os protestos que levaram à queda do governo Mubarak e por continuarem fazendo demandas, agora ao Conselho Supremo das Forças Armadas. Suspeitas partiram até dos maiores rivais esportivos do Ah-Ahly, o Zamalek, também de Cairo. Os ultras do Zamalek, apelidados White Knights, lançaram um documento oficial antes da partida de Port Said iniciando um “cessar-fogo” entre as duas principais torcidas do Egito pelo bem do país, ou seja, a formação de uma coalizão mais unida pronta para novos protestos. As suspeitas de que o ataque foi planejado tornam-se ainda mais fortes com o afrouxamento da segurança na partida (tanto o governador de Port Said quanto o chefe de segurança local não estavam presentes na partida, algo raro num jogo desse porte); a presença de cartazes com dizeres como “Hoje vamos mata-los”, como relatado pelo assistente técnico do Al-Ahly, Oscar Elizondo; a facilidade com a qual os ultras locais tiveram acesso ao campo e principalmente as músicas favoráveis ao Conselho Supremo das Forças Armadas que a torcida local cantava durante a partida, em clara oposição aos Ahlawy, os ultras do Al-Ahly. Um ultra do Zamalek, em entrevista ao jornal francês Le Monde, colocou em questão a possibilidade de o ataque planejado ter sido realizado para “decapitar o grupo de seus elementos mais importantes num momento onde a unidade dos grupos ultras se tornava cada vez mais forte”. Um esquema de emergência com diversos helicópteros e aviões militares foi montado para evacuar torcedores, jogadores e membros da comissão técnica, e mesmo no aeroporto Tantawi, o chefe do Conselho Supremo, deu declarações ambíguas ao povo egípcio, para “participar na caça aos culpados” e que a população “conhece os culpados”. Revolucionários, ao lado de familiares e torcedores, esperaram a chegada dos que escaparam do massacre até perto de duas horas da manhã e o coro de “Morte à Tantawi” foi ouvido. Um deputado do partido social-democrata acusou os militares de procurar provocar o caos e que “não se pode tratar de uma coincidência”, já que o massacre aconteceu um dia após o primeiro-ministro, Kamal Al-Ganzouri, ter comparecido ao parlamento tentando manter o Estado de Emergência. A Irmandade Muçulmana, que detém a maioria das cadeiras no Parlamento e se beneficiaria com uma eleição neste momento, não se pronunciou em favor à urgência e nem fez declarações oficiais contra o Conselho Militar.
Diante a tragédia e as acusações fica o exemplo do Al-Ahly, que criou um fundo destinado aos familiares das vítimas do massacre - que recebeu doações da FIFA e do próprio treinador do Al-Ahly - e dos ultras do Zamalek, que apesar da rivalidade esportiva se une aos torcedores do Al-Ahly diante um conflito muito mais importante e que define o futuro do seu país.

Ian Rafael Flores é acadêmico do 5º semestre do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba.

Um comentário:

  1. http://www.youtube.com/watch?v=Z-L9v8V3m-4

    Este vídeo do thinktank Stratfor também comenta sobre o assunto, vale a pena vê-lo.

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