|
Afegãos que moram em São Paulo durante protesto na porta do escritório do Itamaraty - Eduardo Anizelli/Folhapress. Disponível aqui. |
Por Ana Cristina Cercal dos Santos*
Em agosto de 2021, o grupo extremista Talibã retornou ao poder no
Afeganistão logo após a saída da ocupação estadunidense do território. A potência
ocidental havia se instalado lá 20 anos atrás com o propósito de retirar do poder o
grupo que havia permitido a ocultação de Osama Bin Laden, responsável pelo
ataque terrorista de 11 de setembro de 2001.
Com a retirada do exército norteamericano, os fundamentalistas viram a
oportunidade de recuperar o território afegão. Logo nas primeiras horas após o
anúncio da volta do Talibã, muitos tentaram sair do país pelo aeroporto, gerando
imagens de desespero que impactaram o mundo todo. Para os que ali estavam, o
retorno dos extremistas significou o retorno de restrições e supressões de direitos,
além de perseguições contra opositores.
Não bastasse essa conjuntura, o povo afegão ainda está pagando por um
crime que não cometeu. No ano passado, os Estados Unidos anunciaram o confisco
de 7 bilhões de dólares das contas do Afeganistão, alegando que o dinheiro seria
redirecionado para compensar as vítimas do ataque de 11 de setembro. Com isso, a
crise humanitária afegã aumenta ainda mais, uma vez que esse posicionamento contribui para o declínio econômico do país. Tais fatos combinados com desastres
naturais, pobreza e insegurança alimentar ocasionaram a migração de 2,6 milhões
de pessoas apenas em 2021.
Aqueles que permanecem no território afegão enfrentam agora o resultado de
interferências do mundo exterior, além das medidas forçadas pelo Talibã. Dentre as
restrições impostas pelo grupo, as mais conhecidas são as direcionadas às
mulheres. Em um primeiro momento, os extremistas haviam declarado que não
iriam interferir nos seus direitos como antigamente, a fim de tentar amenizar a
imagem perante à comunidade internacional. Contudo, recentemente as mulheres
foram proibidas de viajar sem a companhia de um homem, e o uso da burca
tornou-se mais uma vez obrigatório, inclusive para as apresentadoras de televisão
que agora devem cobrir o rosto durante a transmissão do programa.
No meio de um conjunto de medidas que vêm para suprimir direitos e
liberdade de escolha, a restrição que pode trazer consequências mais duradouras
talvez seja a proibição de estudar. Foi nesse contexto que a paquistanesa Malala foi
alvo de um atentado quando estava retornando da escola em 2012 e, desde então,
tornou-se uma defensora assídua do direito à educação das meninas, tendo
demonstrado sua preocupação pela volta do regime ao poder no Afeganistão. Após
falsas promessas de que não haveriam restrições nesse sentido, os temores de
Malala foram confirmados pela não abertura das escolas de meninas, que deveria
ter ocorrido em março deste ano.
Diante deste cenário de restrições, ameaças e perseguições, para muitos não
há alternativa senão migrar do território afegão. Dada as circunstâncias, o Brasil
passou a conceder vistos para acolhida humanitária de afegãos, que é uma das
modalidades de visto temporário dirigido aos apátridas ou estrangeiros de países
que se encontram em instabilidade institucional, conforme Lei no 13.445/2017,
conhecida como Lei de Migrações. O visto humanitário abarca questões de conflito
armado, calamidades ambientais, violações de direito humanitário e grave violação
de direitos humanos, sendo neste caso um meio para depois requerer o
reconhecimento como refugiado.
Em dezembro do ano passado, o governo brasileiro concedeu mais de 300
vistos humanitários para a acolhida dos afegãos. Infelizmente, afegãos relatam
dificuldades com burocracias inoportunas das embaixadas brasileiras em países
próximos ao Afeganistão, o que ocasionou atrasos para a concessão do visto, crítica
plausível uma vez que a ideia desse visto é justamente possibilitar a acolhida
daqueles que precisam mudar de localização com urgência e que muitas vezes não
portam consigo documentos básicos.
Além da permissão legal para ingressar no território brasileiro, os refugiados
podem encontrar outras barreiras no caminho, como por exemplo o deslocamento
por terra e o cuidado que devem ter para não serem abordados pelo Talibã. Para
alguns, o trajeto desde a saída do Afeganistão até a chegada no Brasil durou mais
de dois meses. Ainda, alguns refugiados relataram dificuldades ao usarem uma rota
de passagem pelo Paquistão, onde quase foram deportados ao passarem pela
migração do país, circunstância em que seriam enviados de volta ao Afeganistão.
Após tantas dificuldades e sofrimentos, a chegada ao Brasil representa um
momento de esperança. Em outubro de 2021, um grupo de juízas afegãs e seus
familiares foram acolhidos em Brasília, totalizando 27 pessoas. Esse primeiro
acolhimento foi realizado com apoio de psicólogos e assistentes sociais do
programa de apoio ao migrante do Distrito Federal (Getpam - Programa Pró-Vítima
e servidores da Gerência de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Apoio ao
Migrante), momento em que foi viabilizado a vacinação contra a Covid-19, a
matrícula de crianças em escolas e a emissão de documentos para a regularização
dos refugiados em território nacional, conforme esclarecido em contato com a
Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus/DF).
Desde então, vários outros grupos de afegãos chegaram ao Brasil. Depois
dos protocolos iniciais mencionados, as famílias de refugiados estão sendo
acolhidas por grupos de igrejas que se comprometeram a ajudar com despesas até
que eles sejam devidamente inseridos na sociedade e no mercado de trabalho
brasileiro. Os refugiados também contam com a ajuda da Agência da Organização
das Nações Unidas para Refugiados com parcerias com a sociedade civil, ONGs e
centros acadêmicos, como é o caso da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Centro
Universitário Curitiba.
Não obstante a acolhida pelo governo brasileiro, há ainda o desafio da
adaptação em uma nova cultura, do aprendizado do português, da validação de
suas profissões, e também, dentre outros, o desafio de superar o que ficou para
trás. Nesse contexto, cabe às instituições e à população a contribuição para que a
esperança de um futuro melhor e digno se concretize para os refugiados.
*Ana é advogada, pós-graduanda em direitos humanos e voluntária na Cátedra Sérgio Vieira de Mello - Unicuritiba.
Referências
G1. Afegãos desesperados invadem aeroporto de Cabul e se agarram a avião para
fugir do Talibã. 16/08/2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/08/16/afegaos-desesperados-inva
dem-aeroporto-de-cabul-e-se-agarram-a-aviao-para-fugir-do-taliba.ghtml>. Acesso
em: 24/05/2022.
The Intercept Brasil. EUA cometem equivalente a ‘assassinato em massa’ ao
congelar dinheiro do Afeganistão. 18/02/2022. Disponível em:
<https://theintercept.com/2022/02/18/eua-bloqueio-dinheiro-afeganistao/>. Acesso
em: 25/05/2022.
Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados Brasil. Afeganistão.
Disponível em:
<https://www.acnur.org/portugues/afeganistao/#:~:text=O%20Afeganist%C3%A3o%
20est%C3%A1%20passando%20por,pobreza%20cr%C3%B4nica%20e%20insegur
an%C3%A7a%20alimentar>.
CNN. Taliban decree orders women in Afghanistan to cover their faces. Disponivel
em:
<https://edition.cnn.com/2022/05/07/asia/afghanistan-taliban-decree-women-intl/inde
x.html?utm_source=thenewscc&utm_medium=email&utm_campaign=referral>.
Acesso em: 15/05/2022.
G1 Mundo. Talibã ordena que apresentadoras de TV cubram o rosto. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/05/19/taliba-ordena-que-apresentadoras-
de-tv-cubram-o-rosto.ghtml>. Acesso em: 19/05/2022.
G1 Mundo. ‘Estou profundamente preocupada com as mulheres afegãs’, diz Malala
enquanto o Talibã cerca Cabul. 15/08/2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/15/estou-profundamente-preocupada-
com-as-mulheres-afegas-diz-malala-enquanto-o-taliba-cerca-cabul.ghtml>. Acesso
em: 16/05/2022.
RFI Mundo. Em dia de volta às aulas, Talibã fecha escolas e manda alunas afegãs
para casa. Disponível em:
<https://www.rfi.fr/br/mundo/20220323-em-dia-de-volta-%C3%A0s-aulas-talib%C3%
A3-fecha-escolas-e-manda-alunas-afeg%C3%A3s-para-casa>. Acesso em:
20/05/2022.
BRASIL. Lei 13.445 de 24 de maio de 2017. Lei de Migração. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso
em: 17/05/2022.
Governo Federal. Ministério das Relações Exteriores. Vistos humanitários para
afegãos. Nota à imprensa no 164, publicado em 01/12/2021. Disponível em:
<https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/vistos
-humanitarios-para-afegaos-1deg-de-dezembro-de-2021>. Acesso em: 15/05/2022.
Agência Senado. Em comissão, afegãos se queixam de burocracia excessiva do
itamaraty para acolher refugiados. Senado Notícias, 19/11/2021. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/19/em-comissao-afegaos-s
e-queixam-de-burocracia-excessiva-do-itamaraty-para-acolher-refugiados>. Acesso
em: 15/05/2022.
G1 Globonews. Filhos afegãos reencontram pais no Brasil após seis meses de fuga
do Talibã. São Paulo, 13/02/2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/02/13/filhos-afegaos-reencontram-p
ais-no-brasil-apos-seis-meses-de-fuga-do-taliba.ghtml>. Acesso em: 16/05/2022.
CNN Brasil. Em fuga do regime Talibã, grupo de afegãos chega ao Brasil. Disponível
em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/em-fuga-do-regime-taliba-grupo-de-afeg
aos-chega-ao-brasil/>. Acesso em: 15/05/2022.
G1. Juízas afegãs ameaçadas pelo Talibã e recebidas em Brasília fazem CPF.
Distrito Federal, 28/10/2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/10/28/juizas-afegas-ameacadas
-pelo-taliba-e-recebidas-em-brasilia-fazem-cpf.ghtml>. Acesso em: 18/05/2022.
CNN Brasil. Em fuga do regime Talibã, grupo de afegãos chega ao Brasil. Disponível
em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/em-fuga-do-regime-taliba-grupo-de-afeg
aos-chega-ao-brasil/>. Acesso em: 15/05/2022.