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quinta-feira, 2 de junho de 2022

CÁTEDRA: Entre desesperos e esperanças - a atual situação dos refugiados afegãos no Brasil

Afegãos que moram em São Paulo durante protesto na porta do escritório do Itamaraty - Eduardo Anizelli/Folhapress. Disponível aqui.
Por Ana Cristina Cercal dos Santos*

    Em agosto de 2021, o grupo extremista Talibã retornou ao poder no Afeganistão logo após a saída da ocupação estadunidense do território. A potência ocidental havia se instalado lá 20 anos atrás com o propósito de retirar do poder o grupo que havia permitido a ocultação de Osama Bin Laden, responsável pelo ataque terrorista de 11 de setembro de 2001.
    Com a retirada do exército norteamericano, os fundamentalistas viram a oportunidade de recuperar o território afegão. Logo nas primeiras horas após o anúncio da volta do Talibã, muitos tentaram sair do país pelo aeroporto, gerando imagens de desespero que impactaram o mundo todo. Para os que ali estavam, o retorno dos extremistas significou o retorno de restrições e supressões de direitos, além de perseguições contra opositores. 
    Não bastasse essa conjuntura, o povo afegão ainda está pagando por um crime que não cometeu. No ano passado, os Estados Unidos anunciaram o confisco de 7 bilhões de dólares das contas do Afeganistão, alegando que o dinheiro seria redirecionado para compensar as vítimas do ataque de 11 de setembro. Com isso, a crise humanitária afegã aumenta ainda mais, uma vez que esse posicionamento contribui para o declínio econômico do país. Tais fatos combinados com desastres naturais, pobreza e insegurança alimentar ocasionaram a migração de 2,6 milhões de pessoas apenas em 2021. 
    Aqueles que permanecem no território afegão enfrentam agora o resultado de interferências do mundo exterior, além das medidas forçadas pelo Talibã. Dentre as restrições impostas pelo grupo, as mais conhecidas são as direcionadas às mulheres. Em um primeiro momento, os extremistas haviam declarado que não iriam interferir nos seus direitos como antigamente, a fim de tentar amenizar a imagem perante à comunidade internacional. Contudo, recentemente as mulheres foram proibidas de viajar sem a companhia de um homem, e o uso da burca tornou-se mais uma vez obrigatório, inclusive para as apresentadoras de televisão que agora devem cobrir o rosto durante a transmissão do programa. 
    No meio de um conjunto de medidas que vêm para suprimir direitos e liberdade de escolha, a restrição que pode trazer consequências mais duradouras talvez seja a proibição de estudar. Foi nesse contexto que a paquistanesa Malala foi alvo de um atentado quando estava retornando da escola em 2012 e, desde então, tornou-se uma defensora assídua do direito à educação das meninas, tendo demonstrado sua preocupação pela volta do regime ao poder no Afeganistão. Após falsas promessas de que não haveriam restrições nesse sentido, os temores de Malala foram confirmados pela não abertura das escolas de meninas, que deveria ter ocorrido em março deste ano. 
    Diante deste cenário de restrições, ameaças e perseguições, para muitos não há alternativa senão migrar do território afegão. Dada as circunstâncias, o Brasil passou a conceder vistos para acolhida humanitária de afegãos, que é uma das modalidades de visto temporário dirigido aos apátridas ou estrangeiros de países que se encontram em instabilidade institucional, conforme Lei no 13.445/2017, conhecida como Lei de Migrações. O visto humanitário abarca questões de conflito armado, calamidades ambientais, violações de direito humanitário e grave violação de direitos humanos, sendo neste caso um meio para depois requerer o reconhecimento como refugiado. 
    Em dezembro do ano passado, o governo brasileiro concedeu mais de 300 vistos humanitários para a acolhida dos afegãos. Infelizmente, afegãos relatam dificuldades com burocracias inoportunas das embaixadas brasileiras em países próximos ao Afeganistão, o que ocasionou atrasos para a concessão do visto, crítica plausível uma vez que a ideia desse visto é justamente possibilitar a acolhida daqueles que precisam mudar de localização com urgência e que muitas vezes não portam consigo documentos básicos. 
    Além da permissão legal para ingressar no território brasileiro, os refugiados podem encontrar outras barreiras no caminho, como por exemplo o deslocamento por terra e o cuidado que devem ter para não serem abordados pelo Talibã. Para alguns, o trajeto desde a saída do Afeganistão até a chegada no Brasil durou mais de dois meses. Ainda, alguns refugiados relataram dificuldades ao usarem uma rota de passagem pelo Paquistão, onde quase foram deportados ao passarem pela migração do país, circunstância em que seriam enviados de volta ao Afeganistão. 
    Após tantas dificuldades e sofrimentos, a chegada ao Brasil representa um momento de esperança. Em outubro de 2021, um grupo de juízas afegãs e seus familiares foram acolhidos em Brasília, totalizando 27 pessoas. Esse primeiro acolhimento foi realizado com apoio de psicólogos e assistentes sociais do programa de apoio ao migrante do Distrito Federal (Getpam - Programa Pró-Vítima e servidores da Gerência de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Apoio ao Migrante), momento em que foi viabilizado a vacinação contra a Covid-19, a matrícula de crianças em escolas e a emissão de documentos para a regularização dos refugiados em território nacional, conforme esclarecido em contato com a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus/DF). 
    Desde então, vários outros grupos de afegãos chegaram ao Brasil. Depois dos protocolos iniciais mencionados, as famílias de refugiados estão sendo acolhidas por grupos de igrejas que se comprometeram a ajudar com despesas até que eles sejam devidamente inseridos na sociedade e no mercado de trabalho brasileiro. Os refugiados também contam com a ajuda da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados com parcerias com a sociedade civil, ONGs e centros acadêmicos, como é o caso da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Centro Universitário Curitiba. 
    Não obstante a acolhida pelo governo brasileiro, há ainda o desafio da adaptação em uma nova cultura, do aprendizado do português, da validação de suas profissões, e também, dentre outros, o desafio de superar o que ficou para trás. Nesse contexto, cabe às instituições e à população a contribuição para que a esperança de um futuro melhor e digno se concretize para os refugiados. 

*Ana é advogada, pós-graduanda em direitos humanos e voluntária na Cátedra Sérgio Vieira de Mello - Unicuritiba.

Referências
G1. Afegãos desesperados invadem aeroporto de Cabul e se agarram a avião para fugir do Talibã. 16/08/2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/08/16/afegaos-desesperados-inva dem-aeroporto-de-cabul-e-se-agarram-a-aviao-para-fugir-do-taliba.ghtml>. Acesso em: 24/05/2022.
The Intercept Brasil. EUA cometem equivalente a ‘assassinato em massa’ ao congelar dinheiro do Afeganistão. 18/02/2022. Disponível em: <https://theintercept.com/2022/02/18/eua-bloqueio-dinheiro-afeganistao/>. Acesso em: 25/05/2022.
Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados Brasil. Afeganistão. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/afeganistao/#:~:text=O%20Afeganist%C3%A3o% 20est%C3%A1%20passando%20por,pobreza%20cr%C3%B4nica%20e%20insegur an%C3%A7a%20alimentar>.
CNN. Taliban decree orders women in Afghanistan to cover their faces. Disponivel em: <https://edition.cnn.com/2022/05/07/asia/afghanistan-taliban-decree-women-intl/inde x.html?utm_source=thenewscc&utm_medium=email&utm_campaign=referral>. Acesso em: 15/05/2022.
G1 Mundo. Talibã ordena que apresentadoras de TV cubram o rosto. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/05/19/taliba-ordena-que-apresentadoras- de-tv-cubram-o-rosto.ghtml>. Acesso em: 19/05/2022.
G1 Mundo. ‘Estou profundamente preocupada com as mulheres afegãs’, diz Malala enquanto o Talibã cerca Cabul. 15/08/2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/15/estou-profundamente-preocupada- com-as-mulheres-afegas-diz-malala-enquanto-o-taliba-cerca-cabul.ghtml>. Acesso em: 16/05/2022.
RFI Mundo. Em dia de volta às aulas, Talibã fecha escolas e manda alunas afegãs para casa. Disponível em: <https://www.rfi.fr/br/mundo/20220323-em-dia-de-volta-%C3%A0s-aulas-talib%C3% A3-fecha-escolas-e-manda-alunas-afeg%C3%A3s-para-casa>. Acesso em: 20/05/2022.
BRASIL. Lei 13.445 de 24 de maio de 2017. Lei de Migração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 17/05/2022.
Governo Federal. Ministério das Relações Exteriores. Vistos humanitários para afegãos. Nota à imprensa no 164, publicado em 01/12/2021. Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/vistos -humanitarios-para-afegaos-1deg-de-dezembro-de-2021>. Acesso em: 15/05/2022. Agência Senado. Em comissão, afegãos se queixam de burocracia excessiva do itamaraty para acolher refugiados. Senado Notícias, 19/11/2021. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/19/em-comissao-afegaos-s e-queixam-de-burocracia-excessiva-do-itamaraty-para-acolher-refugiados>. Acesso em: 15/05/2022.
G1 Globonews. Filhos afegãos reencontram pais no Brasil após seis meses de fuga do Talibã. São Paulo, 13/02/2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/02/13/filhos-afegaos-reencontram-p ais-no-brasil-apos-seis-meses-de-fuga-do-taliba.ghtml>. Acesso em: 16/05/2022. CNN Brasil. Em fuga do regime Talibã, grupo de afegãos chega ao Brasil. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/em-fuga-do-regime-taliba-grupo-de-afeg aos-chega-ao-brasil/>. Acesso em: 15/05/2022.
G1. Juízas afegãs ameaçadas pelo Talibã e recebidas em Brasília fazem CPF. Distrito Federal, 28/10/2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/10/28/juizas-afegas-ameacadas -pelo-taliba-e-recebidas-em-brasilia-fazem-cpf.ghtml>. Acesso em: 18/05/2022.
CNN Brasil. Em fuga do regime Talibã, grupo de afegãos chega ao Brasil. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/em-fuga-do-regime-taliba-grupo-de-afeg aos-chega-ao-brasil/>. Acesso em: 15/05/2022. 

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