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domingo, 5 de agosto de 2018

Teoria das Relações Internacionais em destaque: O Soft Power da URSS e da “nova Rússia” de Putin – o cinema do Mosfilm e seu potencial de sedução

Artigo apresentado na disciplina de Teoria das Relações Internacionais I, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, ministrada pela Profa Dra Janiffer Zarpelon. As ideias expressas no artigo não representam a visão da instituição, mas de seus autores. 

* Alice G. Springer

O cinema foi uma forma que o Partido Comunista Soviético usou para tentar ampliar sua influência, o que se casa com o conceito de Soft Power (Poder Brando), o qual será devidamente explicado neste artigo. A criação da Mosfilm na década de 1920, o estúdio de cinema mais antigo da Europa, é prova irrefutável dessa assertiva.
Em um mundo de política cada vez mais globalizada e interconectada, em que a relação de interdependência entre os Estados se torna mais complexa e se aprofunda cada vez mais, “manter seu poder” se faz cada vez mais difícil. Coagir através do poderio militar não mais é o único caminho de se influenciar, e passa a ter de dividir espaço com recursos mais sutis. Para que o poder seja bem aplicado e o Estado possa e seja capaz de desequilibrar a balança do poder ao seu favor e se torne, ou se mantenha, como potência , ele deve aprender a se articular dentro do Sistema Internacional (SI). Os conceitos de Hard Power e Soft Power são de autoria de Joseph Nye, utilizados na obra “O Paradoxo do Poder Americano”, na qual o autor analisa como os EUA se mantêm relevantes no SI. Nye compara o SI a um tabuleiro de xadrez, com 03 níveis (Hard Power, Soft Power e Smart Power, que se encontram com a interdependência) e discorre sobre qual seria a melhor forma de se “jogar”.
O Hard Power e o Soft Power passam a ter um peso igual dentro do Sistema Internacional. Para que se compreenda como o Hard Power e o Soft Power são articulados, faz-se necessário entender o conceito destes. Esses dois tipos de poder podem ser utilizados por atores com participação efetiva nos processos e acontecimentos no cenário internacional. Os atores se dividem em estatais (aqueles que têm soberania e legitimidade no uso da força, além do controle sobre a população e o território), e atores não-estatais (não-soberanos e, sobretudo, ligados ao tipo de poder relacionado ao Soft Power, como ideologias, tecnologia, conhecimento e estilo de vida; são, indivíduos independentes ou organizados, como as OIs e as ONGs).
Joseph Nye escreveu o livro “O Paradoxo do Poder Americano” em 2002, após o de 11 de setembro, tentando concatenar como a maior potência militar do planeta se viu tão vulnerável a um ataque dentro de seu próprio território. Nye ilustra como – ao mesmo tempo em que os Estados Unidos precisam permanecer imponentes no SI – agir de forma a não eliminar outros atores ou “players” (jogadores) por completo, sobretudo porque tal atitude internacionalmente não é bem vista, e também porque ao fazê-lo o Estado se torna cada vez mais alvo de ações do tipo, ou seja, mais suscetível a ataques terroristas. A forma através da qual os EUA poderiam manter seu status quo passa pelos conceitos de Hard Power e Soft Power; este se conecta diretamente com o livro de Nye de 2004, intitulado “Soft Power: The Means to Success in World Politics”, obra cujo propósito é elucidar, exemplificar e ampliar conceito e sua aplicação.
Em sua obra prévia, a de 2002,  Nye explica porque o poder americano é paradoxal, já que dentro do Sistema Internacional os Estados se relacionam em Interdependência Complexa, teoria proposta por Joseph Nye e Robert Keohane em 2001. Para que se entenda o paradoxo é fundamental a compreensão da forma pela qual os Estados se relacionam e, assim, se tornam interdependentes. Nye e Keohane definem tal interdependência de acordo com três principais características: 1) Múltiplos canais conectam sociedades. Esses canais são interestatais, transgovernamentais e relações transnacionais, logo, qualquer ato bilateral ou multilateral que seja interestatal, transgovernamental ou uma relação transnacional, independente do ator que a exerça; 2) A agenda das relações interestatais não tem hierarquia, o que se traduz por não ser a segurança militar prioridade – o tema dessa agenda dependerá do interesse do Estado em dado momento; 3) Não utilização da força militar de um governo em direção a outro ator quando a interdependência complexa seja prioritária. Os dois autores afirmam que uma questão econômica entre parceiros não deve ser resolvida militarmente, porém, a força militar de um governo direcionado a outro pode ser utilizada de forma interessante na condição que esse ato seja focado em um bloco ou ator rival.
O Soft Power é uma ferramenta de poder que não está restrita apenas aos Estados. Qualquer tipo de ator, seja estatal ou não, pode exercê-lo por ser indireto, transnacional e não imediato e se caracteriza por sua esfera que engloba aspectos ideológicos, sociais e culturais. Nye ressalta que o Soft Power é primordial e essencialmente um meio sedutor, que deve atrair outro ator, seja querendo imitar quem exerce esse poder, seja buscando atrair, por exemplo, investimentos ou aumentar área de influência, no caso de Estados. É não obrigar ou coagir a se fazer o que se deseja, já que esse viés é do Hard Power. Há um cuidado, também, na questão da influência, pois há maneiras recompensatórias e ameaçadoras de influenciar. É uma articulação atrativa de poder, cooptadora de pessoas (que querem ser iguais e não são forçadas a sê-lo). Conceitos ideais (democracia expandida, instituições confiáveis, bom campo de negócios) e culturais (língua, história, filmes, produtos próprios, instituições de ensino, tecnologia) são uma forma efetiva de atração. Aliás, atualmente, democracia, estabilidade, paz, liberdade, pluralismo, autonomia, liberalismo, igualdade, prosperidade, sustentabilidade, desenvolvimento, instituições fortes, diplomacia e política externa e, enfim, sistemas seguros, são (bem) vistos como globalmente positivos, e logicamente são atraentes, sedutores “charmosos”.
A abrangência dos meios de “captura” e sedução deve ser exposta como inclusiva para qualquer pessoa, caso contrário, afetaria outros conceitos como a democracia, pois a liberdade e prosperidade são, como já dito, uma forma de Soft Power. Se bem exercidas e demonstradas, liberdade e prosperidade se tornam metas de valores que outros Estados e atores podem querer para si de forma voluntária: “Se eu conseguir levá-lo a querer fazer o que eu quero, não precisarei obrigá-lo a fazer o que não quer ”.
O “American Way of Life” dos anos de 1930, o efeito da difusão em massa dos meios de comunicação foi fundamental para que a música e a indústria do cinema de Hollywood pudessem atingir as mais variadas partes do globo. Com toda essa influência consumida as outras culturas passaram a absorver aquilo que mais as seduziam. Nye compreende que o Hard Power, poder militar e econômico, e o Soft Power, fonte de poder atrativo, ideológico, social e cultural, devem ser complementares para que um Estado consiga manter sua hegemonia, ou vir a ser um ator relevante DE FORMA EFETIVA (Smart Power), não podendo se focar em apenas uma dessas duas fontes de poder. O Sistema Internacional é – como já posto – tridimensional, onde se dá o encontro do Hard, do Soft e do Smart Power com a INTERDEPENDÊNCIA. Quanto mais Smart Power, maior eficácia do Estado e maior relevância deste no mundo.
Da mesma forma a Revolução Russa tentou propagar seus valores utilizando-se dos mesmos meios (telecomunicações). Contudo, a “nova Rússia”, a Rússia pujante, a Rússia dos milionários, a Rússia da nova arquitetura arrojada do centro financeiro de Moscou, a Rússia dos eventos, das Olimpíadas de inverno de Sochi e da Copa de 2018 com seus estádios ultramodernos, não deixa de usar o Mosfilm como meio de atração internacional. Fundada em 1924, ano da morte de Lênin, o Mosfilm (em russo, Мосфильм) sobreviveu a Stálin, à Guerra Fria, ao fim da União Soviética e até a Bóris Ieltsin; hoje se tornou um Soft Power utilizado por Putin, e continua forte e atuante. Seus trabalhos incluem a imensa maioria dos aclamados sucessos da URSS, de Eisenstein a Tarkovski, passando por até pelo aclamado diretor japonês Akira Kurosawa, e o épico “Guerra e Paz”, de Bondartchuk, baseado na obra homônima de Leon de Tolstoi.
Pela quantidade de obras bem sucedidas, foi premiado pelo governo soviético com a maior honraria do país, a Ordem de Lênin. Por quase um século, o estúdio Mosfilm de Moscou, que também figura dentre os maiores da Europa, produziu mais de 2.500 filmes. Como já dito, Sergei Eisenstein, Andrei Tarkovski e muitos outros diretores lendários, bem como Fiódor Bondartchuk aplicaram seus talentos ali.
O Mosfilm é basicamente um estúdio de Hollywood na Rússia, com uma área de 34 hectares. Ele é aberto ao público e um ótimo lugar para turistas, com visitas pelo estúdio várias vezes ao dia. Ali existem 15 pavilhões de cinema, o maior dos quais tem 2.000 metros quadrados e hospedou o primeiro baile de Natacha Rostova em “Guerra e Paz”, além de muitas outras cenas lendárias das telonas. Há, no mais, um estúdio de música, onde são feitas todas as gravações de orquestras e trilhas sonoras. Ele foi projetado por Tom Hidley e pode receber uma orquestra sinfônica grande e coro de 100 pessoas.
Também se podem encontrar ali fantásticos estúdios de montagem e de engenharia de áudio, departamentos de figurinos e decoração, um museu, carros antigos em funcionamento, um complexo de cenário cinematográfico e até uma enorme estufa para produzir flores para determinados filmes.
O símbolo do Mosfilm é a emblemática gigante escultura “Trabalhador e Mulher do Kolkhoz”, de Vera Mukhina. A obra de arte pesa 185 toneladas e foi criada para o Pavilhão Soviético na Exposição Mundial de 1937, em Paris. Ele foi escolhido para representar o cinema russo após a Segunda Guerra Mundial, em 1947. Assim, Mukhina fez uma cópia em pequenas dimensões da escultura, cuja imagem aparece nas sequências de abertura e fechamento de todas as produções do Mosfilm. O primeiro filme a apresentar a vinheta com a obra de arte de Mukhina foi “Vesná” (“Primavera”), de Grigóri Aleksandrov, de 1947. Essa imagem da “velha Rússia”, da URSS, não foi retirada e serve de alicerce para a “nova Rússia” de Putin. Espertamente, o líder russo não nega o passado de sua nação, o que dá maior respaldo a seu Soft Power. Utiliza-se da literatura, do teatro, do ballet, dos palácios, museus e monumentos, de universidades, do centro aeroespacial de Samara e até do prussiano Kant e do metrô de Moscou para se promover.
O estúdio tem um enorme arquivo de cenários, documentos de filmes, planos de filmagem, listas de design e cenários, esboços e descrições de cenas, álbuns de elenco e até projetos arquitetônicos para cenários de filmagem feitos ali ao longo dos anos. Há também filmagens e fotos dos cenários. Os arquivos estão abertos ao público e são um paraíso para estudantes de cinema russo e cinéfilos. É possível analisar ali os planos de produção de “Solaris” (1972), de Tarkovski, e livros de casting de outro filmes seus, como “Andrei Rubliov”, de 1966. Surpreendentemente, os cenários ao ar livre são normalmente destruídos após a filmagem ter terminado. Assim, as partes mais bonitas e caras dos filmes não podem ser preservadas.           
Felizmente, os velhos cenários de Moscou e São Petersburgo se esquivaram de demolições. Eles foram cuidadosamente preservados e são usados por muitos diretores contemporâneos. No ano passado, “Anna Karenina”, outro clássico de Tolstoi adaptado (mais uma vez)  à 7ª arte, foi rodado ali por Karen Chakhnazarov. Entre um filme e outro, os cenários ficam abertos para visitação, o que reforça a imagem de uma “nova Rússia” que se quer criar e seduzir, cooptar.
A fábrica de sonhos de Moscou fez milhares de filmes que se tornaram clássicos em toda a ex-URSS. Assim, os trabalhos do Mosfilm chegaram a receber estatuetas do Oscar e outras premiações importantes. Entre as produções do Mosfilm vencedoras do Oscar estão “Guerra e a Paz”, de 1967, dirigido por Bondartchuk, “Dersu Uzala”, de 1975, de Akira Kurosawa, e “Moscou não acredita em lágrimas”, de 1979, de Vladimir Menchov, entre outros.
Todos os anos, o Mosfilm realiza cerca de 120 filmes, em diferentes níveis de produção. Prova de que Vladimir Putin sabe muito bem que Soft Power pode ser uma arma muito mais sedutora que uma bomba atômica ou drones. Apesar de muitas acusações de violar Direitos Humanos – sobretudo no que tange à homofobia – de perseguir opositores políticos, e, de forjar eleições para se manter no poder, o líder russo usa de outras formas de atração, sendo o Mosfilm uma delas. Não deixa o Hard Power de lado, e justamente, segue a cartilha de Nye, conjugando os poderes e usando no 3º nível, no ordenamento internacional interdependente, a soma de poderes que é o Smart Power. 

Referências Bibliográficas:
Russia Beyond, blog, Disponível em: https://br.rbth.com/cultura/79881-5-curiosidades-sobre-mosfilm, acesso em 16/06/2018.
Página do Estadão de  Cultura, Jornal O Estado de São Paulo,
 Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,mosfilm-90-anos-reune-filmes-do-estudio-russo-na-cinemateca,1592791, acesso em 16/06/2018.
MARTINELLI, Caio Barbosa. “O Jogo Tridimensional: o Hard Power, o Soft Power e a Interdependência Complexa, segundo Joseph Nye” (“The Three Dimensional Game: the Hard Power, the Soft Power and the Complex Interdependence, according to Joseph Nye”). Humanas UFPR, 2016.
NYE, Joseph S. “Soft Power”, New York, Estados Unidos: Public Affairs, 2004.
NYE, Joseph S. “Paradoxo do Poder Americano”. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
NYE, Joseph S; KEOHANE, Robert, Power and Interdependence, Estados Unidos, Longman, 2001.

* Alice G. Springer é estudante do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba. 







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