“(...)Temos de construir uma
espécie de Estados Unidos da Europa, e só dessa forma centenas de milhões de
trabalhadores serão capazes de reconquistar a simples alegria e esperança que
tornam a vida interessante. O processo é simples. Tudo o que você precisa é o
objetivo de centenas de milhões de homens e mulheres, fazer o bem ao invés de
fazer o mal e como recompensa bênçãos ao invés de maldições(...)” (Winston
Churchill – 1946)
Direito Internacional em Foco: A saída do Reino Unido da União Europeia
Michele Hastreiter*
Setenta
anos depois do discurso em que Winston Churchill conclamou a formação dos “Estados Unidos da Europa”, sua terra natal é
a primeira a decidir abandonar o projeto de integração europeu – em uma
apertada votação popular em que o “Brexit” (Britain Exit) venceu o “Remain” por
cerca de 1 milhão de votos. É um momento
de incertezas para o Reino Unido, para o futuro do continente europeu e para a
comunidade internacional como um todo. Antes de traçarmos arriscados prognósticos
para o futuro, cabe, aqui, uma breve
reflexão sobre a formação do bloco europeu e a participação do Reino Unido
neste processo.
A
ideia de integrar a Europa surge ao final da Segunda Guerra Mundial – quando evitar
um novo conflito e encerrar a rivalidade histórica entre os países do
continente (sobretudo França e Alemanha) era a preocupação primordial dos
líderes europeus. Neste contexto, Winston Churchill foi um dos pioneiros a
defender uma Europa unida como o caminho para garantir a paz mundial. A
proposta britânica, porém, era a de criar uma espécie de confederação pautada
em uma cooperação intergovernamental sem que houvesse uma cessão de soberania a
instâncias supranacionais. Em outras palavras, os britânicos acreditavam em um
projeto de integração europeu no qual os Estados continuassem mantendo intacto
seus poderes decisórios e nos quais a tomada de decisão dependesse de uma
unanimidade entre os países.
Existiam,
porém, outras propostas para integrar o continente europeu e a perspectiva
funcionalista - capitaneada pelo intelectual francês Jean Monnet - que defendia
uma estratégia gradual de transferência de soberania, acabou prevalecendo. Em 09 de maio de 1950 (data hoje celebrada
como o Dia da Europa), o Ministro de Relações Exteriores francês Robert Schuman
concretizou a declaração de Churchill de que a paz e o progresso na Europa
passariam por uma cooperação Franco-Germânica, mas adotou os postulados
teóricos do funcionalismo de Monnet para fundar a Comunidade Europeia do Carvão
e do Aço - CECA (formalmente criada pelo Tratado de Paris em 18 de abril de
1951).
A
CECA inovava por trazer instituições como a Alta Autoridade e o Tribunal de
Justiça que poderiam emanar decisões obrigatórias aos Estados. O Reino Unido, que não concordava com a
criação de autoridades supranacionais, não estava entre seus membros fundadores
(França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo). Em
1957, os países da CECA avançam na integração e criam, por meio do Tratado de
Roma, celebrado em 25 de março daquele ano, a Comunidade Econômica Europeia
(CEE) – e novamente o Reino Unido optou por não participar do projeto de
integração. No mesmo ano, criou-se também a Comunidade Europeia de Energia Atômica
(CEEA) e as três Comunidades passaram a dar o norte da integração europeia.
Em
razão das recusas iniciais do Reino Unido a participar do bloco, o presidente
francês Charles de Gaulle vetou o ingresso dos britânicos quando estes pediram
para entrar nas Comunidades Europeias pela primeira vez, já na década de 60. Foi só em 1973 que o Reino Unido finalmente
aderiu ao projeto. Após este primeiro alargamento das
Comunidades, o crescimento da integração europeia acelerou-se, tanto no que diz
respeito ao número dos países membros quanto no escopo da integração. A formação de um mercado comum, com livre
circulação de bens, pessoas, serviços e capitais foi um grande passo – decidido
com o Ato Único Europeu de 1987 e implementado com a fusão das três comunidades
pelo Tratado de Maastricht em 1992. Foi quando se instituiu a União Europeia
nos moldes atuais.
Dali
em diante, a integração europeia avançou e atingiu patamares até então inimaginados
pelo Direito Internacional. O Direito Comunitário alargou-se fortemente pelas
demandas criadas pelo mercado comum. Pautado na primazia sobre os direitos
nacionais, vários aspectos da vida europeia passaram a ser regulados por um
Direito emanado de instâncias comunitárias. Criou-se uma cidadania europeia e
pouco a pouco, foi-se alterando as estruturas institucionais do bloco para
possibilitar a adoção de uma moeda comum: o Euro.
Apesar
dos avanços marcantes no projeto europeu, o relacionamento dos súditos da
Rainha sempre foi mais distanciado, até mesmo porque o Reino Unido nutria especial
proximidade com os Estados Unidos e demais países da Commonwealth. Não por acaso, opuseram-se a criação da Zona do Euro
e dela nunca fizeram parte, assim como se mantiveram alheios ao Acordo Schengen
– que cria um espaço de livre circulação com diversos países da região. Este derradeiro plebiscito sequer foi o primeiro
no qual os britânicos questionaram-se sobre a permanência no bloco: em 1975 foi
feito um questionamento semelhante, mas a opção vencedora foi a de permanecer.
É
bem verdade que o processo europeu não se firmou sem críticas – muitas,
especialmente acentuadas após o ingresso de países do leste europeu no bloco, a
crise econômica de 2008 e a atual crise migratória. Estas críticas não se
limitam ao Reino Unido e há quem diga, de fato, que o continente estagnou em
seus propósitos de integração e que talvez um limite tenha sido atingido, sendo
que a saída do Reino Unido é apenas o início de outras retiradas e inevitáveis
reformas no bloco.
O
que se nota, porém, é que apesar de muitas críticas pertinentes na integração
do continente - merecendo destaque aos questionamentos quanto a participação
popular e o déficit democrático no bloco europeu, bem delineados por Jurgen
Habermas em “Sobre a constituição da Europa” - muitos dos argumentos que
defendiam a saída do Reino Unido do bloco são mais elementares e vão de
encontro a uma visão cosmopolita de uma sociedade formada por cidadãos do mundo,
na qual a existência da União Europeia tornava possível acreditar. Dentro deste contexto, é difícil não
interpretar a decisão como um enrijecimento das linhas imaginárias e invisíveis que separam os países e um retrocesso para a comunidade internacional.
É preciso destacar, por fim, que o
procedimento de saída da União Europeia não é bem definido pelos Tratados que a
constituíram. A saída de países do bloco
europeu está prevista no artigo 50[1]
dos Tratados da União Europeia, na redação dada pelo Tratado de Lisboa (firmado
em substituição a não aprovada Constituição da Europa em 2007), mas os passos
para que isto aconteça dependerão de um acordo a ser celebrado pelo Reino Unido
com o Conselho Europeu – no qual também ficará definido como será o
relacionamento do país com os demais membros do bloco de agora em diante. O
Tratado também prevê que as normas do ordenamento jurídico europeu continuam
vigentes e obrigatórias para o Reino Unido até uma data a ser estabelecida
neste futuro acordo – ou, em caso de não haver acordo, por mais dois anos.
Isto
significa que as mudanças não serão repentinas, mas é certo que a saída do
Reino Unido afetará, no curto prazo, a economia mundial, a vida de milhares de
trabalhadores migrantes e a dinâmica geopolítica global.
Fontes:
HABERMAS, Jürgen. Sobre a constituição
da Europa. São Paulo: Ed.
Unesp, 2012.
GOMES, Eduardo. Direito da integração
econômica. Curitiba: Intersaberes, 2015.
EUROPEAN COMISSION. Winston Churchill: calling
for a United States of Europe. Disponível em: http://europa.eu/about-eu/eu-history/founding-fathers/pdf/winston_churchill_en.pdf . Acesso em 24 de junho de 2016.
DN. A conflituosa relação entre o
Reino Unido e a União Europeia. Disponível em: http://www.dn.pt/mundo/interior/a-conflituosa-relacao-entre-reino-unido-e-uniao-europeia-5241201.html.
Acesso em 24 de junho de 2016.
BBC. O Dia em que os britânicos
decidiram permanecer na Europa. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36592826.
Acesso em 24 de junho de 2016.
[1]1.
Todo Estado membro poderá decidir deixar a União de acordo com as suas leis.
2. Um Estado membro que decida deixar a UE deverá
notificar a organização da sua intenção. De acordo com o que foi definido pelo
Conselho Europeu, a UE devera chegar a um acordo com esse Estado, preparando a
sua saída e tendo em conta o futuro da relação entre a União e esse mesmo
Estado. O acordo deverá ser negociado tendo em conta o artigo 218(3) do Tratado
de Lisboa sobre o funcionamento da UE. Deverá ser concluido em nome da União
pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, depois de obtida a autorização
do Parlamento Europeu.
3. O Tratado deixará de estar em vigor para o Estado
em questão a partir da data acordada no acordo ou, caso não seja possível, dois
anos depois da notificação referida no parágrafo dois, a não ser que o Conselho
Europeu, depois de chegar a acordo com o Estado em causa, decida extender esse
periodo.
4.Relativamente ao disposto nos parágrafos segundo e
terceiro, o membro do Conselho Europeu que representa o Estado que abandona a
União não participará nas discussões do Conselho Europeu que lhe digam
respeito. Deverá ser acordada uma maioria qualificada de acordo com o artigo
238(3)(b) do Tratado, sobre o funcionamento da UE.
5. Todo Estado que tenha abandonado a UE e queira
voltar à mesma, terá de se sujeitar ao processo disposto no artigo 49”.
Muito esclarecedor este artigo!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluir