A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
O Direito Internacional Humanitário e a Distinção entre
Alvos Civis e Militares
Ana Carolina Zanette, Daniel Silva, Kamila Pierin,
Kimberly
O Direito Internacional Humanitário,
para Jean Marcel Fernandes, é ‘’a esfera do Direito Internacional Público
formada por tratados e costumes internacionais que visam a promover a paz em
situações de conflitos armados e após o fim das hostilidades, por intermédio da
repressão da violência sob as seguintes formas: proteção de vítimas e bens,
limitação de meios e métodos de combate, salvaguarda dos direitos humanos e
julgamento dos infratores’’. Sua existência antecede mesmo ao Direito
Internacional dos Direitos Humanos, tendo sua primeira adoção generalizada por
tratado já em 1864.
Comumente diz-se também que o
Direito Humanitário é regido pelo jus in
bello, ou seja, pelo “direito durante a guerra”. Não obstante, caracterizações
deste tipo que partem de distinções entre diferentes temporalidades do conflito
não são consensuais na doutrina. Uma parte desta, por exemplo, leciona que este
ramo não se restringe à duração do conflito, mencionando a constante obrigação
dos Estados na educação humanitária de seus militares ou a obrigação de
tratamento de prisioneiros ou de julgamento após o fim das hostilidades. Certo
é, no entanto, que o Direito Humanitário não se preocupa com as questões que
levam as pessoas à guerra, regidas pelo jus
ad bellum, mas sim em, acima de tudo, proteger não-combatentes, sem
considerar em qual lado do conflito elas estão, ou as motivações das hostilidades.
Dessa forma, a proteção dos
não-combatentes (aos quais se refere amplamente como “civis”), categoria que
inclui, por exemplo, civis tradicionais, vítimas de conflitos e militares
feridos, constitui a base de todo esse ramo, estando presente na Convenção de
Genebra de 1949 (sucessora das Convenções de 1864, 1906 e 1929) e seus
Protocolos Adicionais (I e II, de 1977; e III, de 2005), principais documentos
do Direito Humanitário. As normas presentes na Convenção são o produto do longo
progresso de positivação do ramo ao longo dos séculos, sendo muitas delas
consideradas costumeiras, isto é, aplicáveis também a Estados que não
ratificaram tais documentos, a exemplo do aqui discutido Princípio da Distinção.
Visando a proteção dos indivíduos
não envolvidos no conflito – internacional ou não – a Convenção traz como regra
fundamental em seu Protocolo Adicional I a seguinte ordem: “(...) as Partes no
conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes,
assim como entre bens de carácter civil e objetivos militares, devendo,
portanto, dirigir as suas operações unicamente contra objetivos militares.”
Essa norma, que segundo a Cruz
Vermelha é a Regra No. 1 do Direito Internacional Humanitário Costumeiro, determina,
em outras palavras, que a população e os bens civis devem ser protegidos de
ataques enquanto partes não operantes do conflito, gozando de proteção
especial, estando sujeito a ataques apenas pessoal e objetos militares. Este é
o chamado Princípio da Distinção.
Por militares, ou ainda combatentes,
tem-se definido de forma clara, com pouco espaço para interpretações, que se
enquadram apenas pessoas que participem ativamente nas hostilidades, ou seja,
que tomem parte atuante no conflito em termos de uso da força. Neste contexto,
há a possibilidade de civis serem considerados legalmente como alvos militares
(e, portanto, legítimos), caso cheguem a participar diretamente nas
hostilidades. Podem ser alvejados, no entanto, tão-somente enquanto mantêm-se
nesta condição; à diferença de militares comuns (integrados visivelmente às
forças armadas), que só deixam de ser alvos legítimos após circunstâncias como rendimento
ou ferimento grave. Todos os demais são civis comuns e, assim, protegidos pelo
Direito Internacional Humanitário. Essas definições são mutuamente excludentes,
com o fim de evitar que alguém ataque sem poder ser atacado ou seja alvo de
agressões inimigas sem poder se defender.
Neste sentido, a Convenção também traz,
por exemplo, a obrigação dos combatentes de usarem um uniforme ou algo que os
identifique como tal, como carregarem as armas abertamente. Em interessante
jurisprudência nacional, em 1969, o Caso Kassem foi um exemplo de tal norma, em
que militares israelenses, apesar de não usarem um uniforme, utilizavam uma
vestimenta não comum na região onde estavam. Isso foi suficiente para a Corte
Militar de Israel concluir que uma identificação suficiente havia sido feita em
que pese seu status de combatente.
Com relação a objetos, importante
elaboração é feita por Marco Sassòli, que mostra que qualquer objeto pode se
tornar belicoso, e consequentemente, um alvo legítimo. Isso ocorre porque a
distinção não se dá por seu valor intrínseco, mas sim de acordo com seu uso ou
seu potencial de uso no ataque. Desse modo, para tornar-se militar, Sassòli
afirma que o alvo deve cumprir dois critérios: a) contribuir efetivamente para
a ação militar do inimigo; b) sua destruição, captura, ou neutralização ofereça
uma vantagem militar. Objetos de uso tradicionalmente civil que passam a cumprir
tais critérios são chamados de objetos de uso duplo ou dual.
Essa concepção nem sempre é muito
clara. É possível argumentar, por exemplo, que quando se combate um regime
autoritário, o qual tem na sociedade o aparelho de sua manutenção, ataques a
rádios ou instituições governamentais seriam mais efetivos que investidas
contra as próprias forças armadas. Nesses casos, a destruição dos alvos civis e
institucionais teria impacto psicológico maior, podendo tornar, de forma mais
efetiva, a opinião pública local contrária à manutenção do regime. O debate,
nesse sentido, giraria em torno do fato de tal destruição oferecer ou não uma
vantagem militar ao inimigo, o que o tornaria alvo legítimo.
Uma discussão semelhante é levantada
quando se trata de campanhas militares exclusivamente aéreas, sem possibilidade
imediata de ocupação terrestre. Em situações desse perfil, o exército atacante
pode esgotar a lista de alvos militares, passíveis de ataques, antes de o
governo local ceder, ser deposto ou admitir derrota, o que poderia levá-lo a
alvejar civis em nome de tal rendimento, de certa forma constituindo um
objetivo militar.
A Guerra do Kosovo serviu como
exemplo para alguns desses questionamentos. A OTAN menciona pontes como alvos
de guerra durante os bombardeios aéreos, que por fazerem parte da
infraestrutura local utilizada também por militares, poderia constituir um alvo
legítimo. A Organização também bombardeou a estação de rádio e televisão de Belgrado,
alegando que os transmissores ali presentes integravam a rede militar de
comunicações. Ainda, durante essa campanha aérea, classificou ministérios do
governo entre os alvos militares legítimos, independente da contribuição desses
para as forças armadas locais.
Outra conclusão de Sassòli, neste
contexto, é feita ao afirma que tais alvos podem ser considerados militares apenas
caso tenham um objetivo militar contundente no momento da ação, e não em um
futuro provável. Caso esse princípio seja desconsiderado, qualquer alvo poderia
ser militar, e por extensão, nenhum alvo estaria protegido. Além disso, tal
margem de interpretação quanto à natureza dos alvos traz consigo uma filosofia
de atacar a determinação de luta de um povo e não apenas os alvos militares.
O argumento do lado psicológico dos ataques
apresenta também outros problemas, tal qual o de que exemplos históricos
mostram que intensos bombardeios que afetam a população civil, como na Segunda
Guerra Mundial ou no Iraque de Saddam Hussein, não diminuíram o apoio popular
aos governantes. Tampouco, no caso da Segunda Guerra, houve o desmembramento
esperado das economias locais. É, assim, dubitável que o ataque a civis possa em
casos como esses constituir estratégia militar plausível ou legal.
Ainda sobre objetos, de acordo com o
Protocolo I Adicional da Convenção, um alvo é militar se ele trouxer uma
contribuição efetiva para a ação militar. Decorre que a guerra e os atos de
violência servem apenas para superar as forças militares do inimigo. Também podem
ser considerados assim os objetos que indiretamente apoiam e sustentam a
capacidade de guerrear do inimigo efetivamente, ou que influenciem na
capacidade de decisão do inimigo a continuar ou não a guerra.
Como contraposto a tudo isso, e
decorrente de seu próprio valor humanitário, tem-se no artigo 52 do Protocolo I
que, em caso de dúvidas quanto à caracterização do alvo como militar, o alvo
deve ser considerado civil e portando protegido pelo Direito Humanitário. Dessa
forma, cabe ao atacante provar que seu alvo poderia efetivamente ser
considerado militar acima de qualquer dúvida razoável.
Interpretando tal norma, também
considerada costumeira, interessante jurisprudência foi estabelecida pela Corte
Internacional de Justiça no Caso Nuclear
Weapons, em Opinião Consultiva em resposta ao questionamento sobre a
legalidade da ameaça ou uso de armamentos nucleares, segundo a qual, embora não
haja norma de Direito Internacional que proíba tal uso, este pode ser
considerado em geral proibido pela incapacidade do armamento de distinguir
entre militares e civis.
Sassòli afirma, por fim, que não existe
a categoria de “quase-combatente”, defendida por alguns autores, por mais que
determinado indivíduo possa contribuir para a guerra sem diretamente participar
do exército e das agressões. O autor cita como exemplos funcionários da
indústria de munição, cientistas e políticos, que não são alvos militares
legítimos. Há, entretanto, de ser feita uma observação: fábricas de armamentos
são alvos militares em si e, dessa forma, o ataque a elas não se torna
automaticamente ilegal se resultar na morte de seus funcionários. O que pode
torná-lo ilegal é outro princípio do direito internacional humanitário, o da
proporcionalidade.
Para o autor, seria inaceitável a enorme
margem interpretativa que a categoria traria. Para provar seu ponto, elabora dois
exemplos. O primeiro envolve as mulheres dos países combatentes da Segunda
Guerra Mundial; sem a participação delas no setor industrial, debilitado pela
ida dos homens ao combate, as nações beligerantes perderiam maior parte da
capacidade econômica de manter a guerra. O segundo diz respeito aos professores
de Direito Internacional que justificam a legitimidade de um determinado
conflito e ainda defendem violações do Direito Humanitário. Sem as suas
contribuições teóricas, o conflito poderia não acontecer ou ter duração menor.
Sassòli então se pergunta, ironicamente, se aquelas cidadãs e estes acadêmicos
não seriam, também, “quase-combatentes” e alvos legítimos de hostilidades.
REFERÊNCIAS:
Fernandes, Jean
Marcel: A promoção da paz pelo Direito Internacional Humanitário, 2006.
SASSÒLI, Marco:
Legitimate Targets of Attacks Under International Humanitarian Law, 2003.
SWINARSKI, Cristophe, 2006.
FONTE DA IMAGEM:
http://www.redcross.org/ca/humboldt/take-a-class/international-humanitarian-law
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