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quarta-feira, 8 de junho de 2016

Direito Internacional em Foco: O Direito Internacional Humanitário e a Distinção entre Alvos Civis e Militares




A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.



O Direito Internacional Humanitário e a Distinção entre Alvos Civis e Militares


Ana Carolina Zanette, Daniel Silva, Kamila Pierin, Kimberly

            O Direito Internacional Humanitário, para Jean Marcel Fernandes, é ‘’a esfera do Direito Internacional Público formada por tratados e costumes internacionais que visam a promover a paz em situações de conflitos armados e após o fim das hostilidades, por intermédio da repressão da violência sob as seguintes formas: proteção de vítimas e bens, limitação de meios e métodos de combate, salvaguarda dos direitos humanos e julgamento dos infratores’’. Sua existência antecede mesmo ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo sua primeira adoção generalizada por tratado já em 1864.

            Comumente diz-se também que o Direito Humanitário é regido pelo jus in bello, ou seja, pelo “direito durante a guerra”. Não obstante, caracterizações deste tipo que partem de distinções entre diferentes temporalidades do conflito não são consensuais na doutrina. Uma parte desta, por exemplo, leciona que este ramo não se restringe à duração do conflito, mencionando a constante obrigação dos Estados na educação humanitária de seus militares ou a obrigação de tratamento de prisioneiros ou de julgamento após o fim das hostilidades. Certo é, no entanto, que o Direito Humanitário não se preocupa com as questões que levam as pessoas à guerra, regidas pelo jus ad bellum, mas sim em, acima de tudo, proteger não-combatentes, sem considerar em qual lado do conflito elas estão, ou as motivações das hostilidades.

            Dessa forma, a proteção dos não-combatentes (aos quais se refere amplamente como “civis”), categoria que inclui, por exemplo, civis tradicionais, vítimas de conflitos e militares feridos, constitui a base de todo esse ramo, estando presente na Convenção de Genebra de 1949 (sucessora das Convenções de 1864, 1906 e 1929) e seus Protocolos Adicionais (I e II, de 1977; e III, de 2005), principais documentos do Direito Humanitário. As normas presentes na Convenção são o produto do longo progresso de positivação do ramo ao longo dos séculos, sendo muitas delas consideradas costumeiras, isto é, aplicáveis também a Estados que não ratificaram tais documentos, a exemplo do aqui discutido Princípio da Distinção.

            Visando a proteção dos indivíduos não envolvidos no conflito – internacional ou não – a Convenção traz como regra fundamental em seu Protocolo Adicional I a seguinte ordem: “(...) as Partes no conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes, assim como entre bens de carácter civil e objetivos militares, devendo, portanto, dirigir as suas operações unicamente contra objetivos militares.”

            Essa norma, que segundo a Cruz Vermelha é a Regra No. 1 do Direito Internacional Humanitário Costumeiro, determina, em outras palavras, que a população e os bens civis devem ser protegidos de ataques enquanto partes não operantes do conflito, gozando de proteção especial, estando sujeito a ataques apenas pessoal e objetos militares. Este é o chamado Princípio da Distinção.

            Por militares, ou ainda combatentes, tem-se definido de forma clara, com pouco espaço para interpretações, que se enquadram apenas pessoas que participem ativamente nas hostilidades, ou seja, que tomem parte atuante no conflito em termos de uso da força. Neste contexto, há a possibilidade de civis serem considerados legalmente como alvos militares (e, portanto, legítimos), caso cheguem a participar diretamente nas hostilidades. Podem ser alvejados, no entanto, tão-somente enquanto mantêm-se nesta condição; à diferença de militares comuns (integrados visivelmente às forças armadas), que só deixam de ser alvos legítimos após circunstâncias como rendimento ou ferimento grave. Todos os demais são civis comuns e, assim, protegidos pelo Direito Internacional Humanitário. Essas definições são mutuamente excludentes, com o fim de evitar que alguém ataque sem poder ser atacado ou seja alvo de agressões inimigas sem poder se defender.

            Neste sentido, a Convenção também traz, por exemplo, a obrigação dos combatentes de usarem um uniforme ou algo que os identifique como tal, como carregarem as armas abertamente. Em interessante jurisprudência nacional, em 1969, o Caso Kassem foi um exemplo de tal norma, em que militares israelenses, apesar de não usarem um uniforme, utilizavam uma vestimenta não comum na região onde estavam. Isso foi suficiente para a Corte Militar de Israel concluir que uma identificação suficiente havia sido feita em que pese seu status de combatente.

            Com relação a objetos, importante elaboração é feita por Marco Sassòli, que mostra que qualquer objeto pode se tornar belicoso, e consequentemente, um alvo legítimo. Isso ocorre porque a distinção não se dá por seu valor intrínseco, mas sim de acordo com seu uso ou seu potencial de uso no ataque. Desse modo, para tornar-se militar, Sassòli afirma que o alvo deve cumprir dois critérios: a) contribuir efetivamente para a ação militar do inimigo; b) sua destruição, captura, ou neutralização ofereça uma vantagem militar. Objetos de uso tradicionalmente civil que passam a cumprir tais critérios são chamados de objetos de uso duplo ou dual.

            Essa concepção nem sempre é muito clara. É possível argumentar, por exemplo, que quando se combate um regime autoritário, o qual tem na sociedade o aparelho de sua manutenção, ataques a rádios ou instituições governamentais seriam mais efetivos que investidas contra as próprias forças armadas. Nesses casos, a destruição dos alvos civis e institucionais teria impacto psicológico maior, podendo tornar, de forma mais efetiva, a opinião pública local contrária à manutenção do regime. O debate, nesse sentido, giraria em torno do fato de tal destruição oferecer ou não uma vantagem militar ao inimigo, o que o tornaria alvo legítimo.

            Uma discussão semelhante é levantada quando se trata de campanhas militares exclusivamente aéreas, sem possibilidade imediata de ocupação terrestre. Em situações desse perfil, o exército atacante pode esgotar a lista de alvos militares, passíveis de ataques, antes de o governo local ceder, ser deposto ou admitir derrota, o que poderia levá-lo a alvejar civis em nome de tal rendimento, de certa forma constituindo um objetivo militar.

            A Guerra do Kosovo serviu como exemplo para alguns desses questionamentos. A OTAN menciona pontes como alvos de guerra durante os bombardeios aéreos, que por fazerem parte da infraestrutura local utilizada também por militares, poderia constituir um alvo legítimo. A Organização também bombardeou a estação de rádio e televisão de Belgrado, alegando que os transmissores ali presentes integravam a rede militar de comunicações. Ainda, durante essa campanha aérea, classificou ministérios do governo entre os alvos militares legítimos, independente da contribuição desses para as forças armadas locais.

            Outra conclusão de Sassòli, neste contexto, é feita ao afirma que tais alvos podem ser considerados militares apenas caso tenham um objetivo militar contundente no momento da ação, e não em um futuro provável. Caso esse princípio seja desconsiderado, qualquer alvo poderia ser militar, e por extensão, nenhum alvo estaria protegido. Além disso, tal margem de interpretação quanto à natureza dos alvos traz consigo uma filosofia de atacar a determinação de luta de um povo e não apenas os alvos militares.

            O argumento do lado psicológico dos ataques apresenta também outros problemas, tal qual o de que exemplos históricos mostram que intensos bombardeios que afetam a população civil, como na Segunda Guerra Mundial ou no Iraque de Saddam Hussein, não diminuíram o apoio popular aos governantes. Tampouco, no caso da Segunda Guerra, houve o desmembramento esperado das economias locais. É, assim, dubitável que o ataque a civis possa em casos como esses constituir estratégia militar plausível ou legal.
                                            
            Ainda sobre objetos, de acordo com o Protocolo I Adicional da Convenção, um alvo é militar se ele trouxer uma contribuição efetiva para a ação militar. Decorre que a guerra e os atos de violência servem apenas para superar as forças militares do inimigo. Também podem ser considerados assim os objetos que indiretamente apoiam e sustentam a capacidade de guerrear do inimigo efetivamente, ou que influenciem na capacidade de decisão do inimigo a continuar ou não a guerra.

            Como contraposto a tudo isso, e decorrente de seu próprio valor humanitário, tem-se no artigo 52 do Protocolo I que, em caso de dúvidas quanto à caracterização do alvo como militar, o alvo deve ser considerado civil e portando protegido pelo Direito Humanitário. Dessa forma, cabe ao atacante provar que seu alvo poderia efetivamente ser considerado militar acima de qualquer dúvida razoável.

            Interpretando tal norma, também considerada costumeira, interessante jurisprudência foi estabelecida pela Corte Internacional de Justiça no Caso Nuclear Weapons, em Opinião Consultiva em resposta ao questionamento sobre a legalidade da ameaça ou uso de armamentos nucleares, segundo a qual, embora não haja norma de Direito Internacional que proíba tal uso, este pode ser considerado em geral proibido pela incapacidade do armamento de distinguir entre militares e civis.

            Sassòli afirma, por fim, que não existe a categoria de “quase-combatente”, defendida por alguns autores, por mais que determinado indivíduo possa contribuir para a guerra sem diretamente participar do exército e das agressões. O autor cita como exemplos funcionários da indústria de munição, cientistas e políticos, que não são alvos militares legítimos. Há, entretanto, de ser feita uma observação: fábricas de armamentos são alvos militares em si e, dessa forma, o ataque a elas não se torna automaticamente ilegal se resultar na morte de seus funcionários. O que pode torná-lo ilegal é outro princípio do direito internacional humanitário, o da proporcionalidade.

            Para o autor, seria inaceitável a enorme margem interpretativa que a categoria traria. Para provar seu ponto, elabora dois exemplos. O primeiro envolve as mulheres dos países combatentes da Segunda Guerra Mundial; sem a participação delas no setor industrial, debilitado pela ida dos homens ao combate, as nações beligerantes perderiam maior parte da capacidade econômica de manter a guerra. O segundo diz respeito aos professores de Direito Internacional que justificam a legitimidade de um determinado conflito e ainda defendem violações do Direito Humanitário. Sem as suas contribuições teóricas, o conflito poderia não acontecer ou ter duração menor. Sassòli então se pergunta, ironicamente, se aquelas cidadãs e estes acadêmicos não seriam, também, “quase-combatentes” e alvos legítimos de hostilidades.

REFERÊNCIAS:

Fernandes, Jean Marcel: A promoção da paz pelo Direito Internacional Humanitário, 2006.

SASSÒLI, Marco: Legitimate Targets of Attacks Under International Humanitarian Law, 2003.

SWINARSKI, Cristophe, 2006.



FONTE DA IMAGEM:

http://www.redcross.org/ca/humboldt/take-a-class/international-humanitarian-law




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