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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Esmagadas pelo regime: os direitos das mulheres afegãs à beira da extinção após a tomada do Talibã


    A tomada de poder pelo Talibã foi fortemente sentida pela população afegã. Não passou despercebido o fato de que com a volta do grupo extremista, os direitos conquistados pelas mulheres do país até então, foram ceifados. 
    Desde a assunção do grupo, as mulheres não podem circular pelas ruas a não ser que acompanhadas por algum homem, tiveram de entregar seus postos de trabalho a um homem de sua família e deixar os estudos. 
    Apesar da visão e da construção social do país serem diferentes das perpetuadas no Ocidente, em alguns períodos, a sociedade afegã foi marcada por um maior grau de liberdade às mulheres. Em especial, durante a década de 70 e 80, com o estabelecimento da República Democrática do Afeganistão e da República do Afeganistão, um rol de direito foram concedidos às mulheres – em que pese não fora uma concessão ampla e irrestrita –, o que possibilitou que muitas ingressassem no mercado de trabalho e nos estudos. Estes direitos foram majoritariamente preservados quando, mais em diante, ocorreu a transição para o Estado Islâmico do Afeganistão. 
    Foi com a primeira ascensão ao poder do grupo extremista que os progressos até então alcançados foram revogados. Não somente os direitos das mulheres, mas diversos direitos humanos foram violados com o início da tomada talibã. Um “governo” permeado de violência, severidade, abusos e interpretações exacerbadas da religião. 
    Em entrevista com a Prof. Doutora Priscila Caneparo – advogada, doutora em Direito Internacional e professora da casa de Direitos Humanos, Direito Internacional e Direito Contitucional – pudemos melhor compreender a realidade e o cenário histórico, ambos extremamente permeados de minúcias, que cercam a atual realidade das mulheres no Afeganistão. Antes desta tomada, as mulheres afegãs já passaram por um histórico de restrições em seus direitos, até mesmo sob a presença dos EUA no país. Contudo, sabemos que a tomada do Talibã significou um retrocesso aos pequenos avanços até então feitos. Quando questionada sobre como se deram as restrições do Talebã, respondeu:
Bom, a gente tem um conhecimento histórico que, desde que o Taleban assumiu o poder no Afeganistão, na década de 90, tem-se uma interpretação muito deturpada da Sharia naquele contexto, o que faz com que haja uma perpetração de violência contra os direitos das mulheres. Não obstante, boa parcela da sociedade afegã – especialmente a do sexo masculino – concorda, desde sempre, com tal postura, o que fora, de fato, um empecilho para a consolidação de direitos ao longo da invasão do território pelas potências Ocidentais. Ainda assim, vários direitos forem estabelecidos, especialmente no que tange à liberdade de locomoção e ao direito à educação das mulheres. Segundo dados da ONU, nestes (poucos) dias de retomada do poder pelo Taleban, as mulheres já vêm sofrendo não apenas restrições, mas violências contra seus direitos, incluindo, aí, execuções sumárias, limitação ao direito de se locomover, ao seu direito ao trabalho e, especialmente, as meninas não podem mais frequentar escolas. 
    Ante às violações imediatas impostas pelo regime, e abarcados pela visão talibã, as mulheres, em realidade, tiveram sim seus direitos e liberdade prometidos, mas “de acordo com a lei islâmica”, como transmitiu o porta-voz do obstante, a lei islâmica, neste caso, deve ser entendida como a interpretação extremista pregada por um grupo ideológico radical. Sobre a possibilidade desta promessa de fato ser concretizada, prof. Caneparo respondeu: 
Não acredito, mas há de se contextualizar a resposta. Obviamente, o Taleban que ascende ao poder neste momento é diferente daquele que se encontrava no poder na década de 90. Muitos dos seus atuais integrantes moraram por um bom tempo em Doha, onde tiveram contato com uma sociedade mais tolerante, permitindo, até mesmo, que as mulheres do núcleo viessem a estudar naquela realidade. Não obstante, muito daquilo que grande parcela da população admira no Taleban é que se sentem representados pelo próprio radicalismo e barbáries contra as parcelas vulneráveis da população – incluindo, aí, as mulheres. Ser mais flexível, no caso do Taleban, infelizmente, significa perder boa parcela de seus apoiadores. 
    Como se pode perceber, os mecanismos de manipulação e domínio utilizados pelo Talibã pautam-se em fundamentalismo e nacionalismo de cunho radical, que ergue muitos pleitos em nome da religião. Mas é importante ultrapassar a visão simplista de que a religião seria a justificativa do grupo para a diminuição dos direitos das mulheres. Para tanto, destaca a Dra. Priscila que: 
Aí reside, de fato, um grande problema: confundir religião, liberdade de expressão da mulher a partir de suas vestimentas para com um regime retrógrado e perpetrador de violência, como é o Taleban. O Taleban justifica suas ações em nome da religião, mas a verdade é que a interpretação deturbada da Sharia faz com que tenhamos uma estruturação societária em que nada se assemelha com aquilo que prega o islamismo. É necessária uma comparação qualitativa em termos de direitos das mulheres: a Arábia Saudita, ainda que fundamentalista, tem avançado cada vez mais na consolidação e estruturação dos direitos das mulheres, baseando-se, inclusive, nas leis religiosas para tal interpretação. Ademais, o objetivo do Taleban não é apenas promover o jihad, mas sim expandir seu território, em termos bem objetivos, que nada se atrela à religião.
    Obviamente, o cenário dos direitos das mulheres afegãs é extremamente preocupante e já captura atenção da comunidade internacional acerca de formas de viabilizar uma solução. Dentre as medidas possíveis, analisa-se a concessão de refúgio e vistos humanitários. Com efeito, alguns países já se propuseram a conceder os vistos humanitários, o Brasil, inclusive, autorizou a emissão de vistos humanitários à afegãos fugindo do regime Talibã, no que pode ser considerado um grande avanço em nossas políticas humanitárias. Contudo, não houve, até o momento, uma discussão a nível global que visasse uma cooperação multilateral entre os países para garantir aos afegãos estes direitos. A respeito da possibilidade da formação de uma coalisão global para aceitar as mulheres vítimas de violações como refugiadas, Prof. Priscila esclareceu:
Possibilidade sempre há, o que falta, de fato, é o empenho dos países em aceitarem tais refugiadas – especialmente no que tange ao continente europeu. A retórica, no início de uma deterioração de direitos humanos, é sempre pro persona, mas quando se chega na hora de receber esta parcela vulnerável, os governos impõem diversas limitações e restrições. Devemos lembrar que a própria Grécia já construiu um muro para evitar que os deslocados alcancem os solos europeus – e a União Europeia não lhe impôs nenhuma sanção, ainda que a União Europeia tenha, novamente na retórica, dito para que os países aceitem a população afegã descolada e passível da concessão do refúgio.
    Por mais que tenha ocorrido de forma radical, a restrição de direitos do Afeganistão, lança u olhar de preocupação sob outras formas de restrição de direitos femininos, por vezes mais sutis, em outros países do mundo. No Brasil, mais especificamente, em face de projetos de lei e decisões judiciais que ferem direitos constitucionalmente garantidos às mulheres, aumenta-se a preocupação sobre a garantia dos direitos femininos. Sobre eventual paralelo entre as restrições de direitos nos dois países, Caneparo pontuou que: 
Acho muito difícil fazer esta comparação. Aqui, temos um Estado laico e uma independência entre os poderes. Felizmente, ainda que tais (absurdos) projetos sejam sancionados, temos uma estrutura judiciária apta a barrar tais atrocidades constitucionais. Não obstante, o que me preocupa – e aí é uma pergunta que realmente só o tempo poderá nos responder – é se os valores da sociedade brasileira estão caminhando para o fundamentalismo que se encontra presente em algumas realidades mundanas. É inegável que observamos uma onda evangélica em termos axiológicos na nossa realidade nacional. O problema é quando começarem, de fato, ditarem as regras a partir de sua interpretação. Só o tempo dirá se, de fato, teremos tal cenário no Brasil.
    Em suma, o que se extrai das considerações feitas pela Prof. Priscila Caneparo e pelo atual panorama, é que a questão relativa ao direito das mulheres no Afeganistão está atrelada não somente a um modo de sociedade diferente, mas também pela perpetuação de ideais totalitários de um grupo extremista. Para evitar constatações baseadas meramente na superfície deste problema, faz-se necessário que compreendamos as minúcias da comunidade afegã e o contexto internacional como um todo. 

Referências
EXECUÇÕES sumárias e restrições às mulheres: o que diz primeiro relatório da ONU sobre nova era Talebã no Afeganistão. BBC. 25 ago.2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58330742.
DIREITOS das mulheres no Afeganistão. Hisour. 2021. Disponível em: https://www.hisour.com/pt/womens-rights-in-afghanistan-37352/.
ENTENDA o que ocorre no Afeganistão e a volta do Talibã. El País. 17 agostos 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-16/entenda-o-que-ocorre-no-afe ganistao-e-a-volta-do-taliba.html.
AFEGANISTÃO: a história de quem já vivia sob o controle do Talebã. BBC News. 16 agosto 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58230121.
WOMEN’S RIGHTS IN AFEGHANISTAN. Amnesty International. 2014. Disponível em: https://www.amnesty.org.uk/files/women_in_afghanistan_fact_sheet.pdf.
THE Fragility of Women’s Rights in Afghanistan. Human Rights Watch. 17 agosto 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2021/08/17/fragility-womens-rights-afghanistan.
GOVERNO brasileiro autoriza a concessão de visto humanitário a afegãos. G1. 03 setembro 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/09/03/governo-brasileiro-autoriza-a-co ncessao-de-visto-humanitario-a-afegaos.ghtml.

Um comentário:

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