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terça-feira, 2 de junho de 2020

26 anos depois, o que o genocídio em Ruanda ainda nos ensina?

    Diante da recente prisão do chamado “tesoureiro do genocídio de Ruanda”, Félicien Kabuga, na França, e da confirmação da morte de Augustin Bizimana — um dos principais acusados do genocídio em Ruanda e que estava foragido — os terríveis acontecimentos de 1994 voltam à nossa memória, lembrando-nos da importância do não esquecimento do ocorrido e da necessidade da luta contra a violência étnica. Desde o sucedido entre abril e julho de 1994, muitas pautas têm sido levantadas a respeito — desde a reconciliação, até a reconstrução do país e a responsabilidade da comunidade internacional — mas como dito por Teresa Nogueira Pinto (2011), “um genocídio não é um acontecimento isolado. A sua história tende a ligar o passado, o presente e o futuro numa linha de causas e consequências”, e sendo assim, é necessário um panorama sobre o período. 

O genocídio em Ruanda é fruto de um processo político, social e cultural que tem raízes na colonização belga, iniciada logo após a Primeira Guerra Mundial. Segundo Nogueira Pinto (2011), é devido à política de divide and rule que os belgas conseguiram um domínio indireto sobre Ruanda, apropriando-se das estruturas de poder preexistentes e também favorecendo a minoria tutsi sob a alegação de superioridade racial, o que acabou criando um ambiente de hostilidade entre estes e os hutus no país — apesar do histórico de paz e boa convivência que as etnias possuíam antes da chegada dos europeus. Logo na metade do século XX, a estrutura social imposta pelos belgas começa falhar, sendo que já em 1959, uma revolução social se inicia, criando a primeira onda de refugiados tutsis, que foram obrigados a buscar abrigo nos países vizinhos. A independência é conquistada em 1962 e o jornalista Hutu, Gregoire Kayibanda, assume o poder.

A ascensão de Kayibanda levou à insurgência de novos conflitos entre as etnias. Em dezembro de 1963, o governo começou a organizar unidades hutus de autodefesa, que nada mais eram do que divisões armadas contra os tutsis, o que ocasionou em um massacre desta população, do qual entre dezembro de 1963 e janeiro de 1964, deixou cerca de 10 mil vítimas e 250 mil refugiados tutsis. Com o crescimento da popularidade do General Juvénal Habyarimana — devido principalmente à sua atuação nos Comitês de Defesa Pública, organizados para conter a agitação tutsi — um golpe de Estado foi dado pelo general em julho de 1973. No fim de 1990, com a invasão da Frente Patriótica de Ruanda (FPR), exército guerrilheiro composto de exilados em Uganda, e a declaração de guerra ao regime de Habyarimana, todos os tutsis de Ruanda passaram a ser considerados cúmplices da FRP — o que resultou no assassinato de aproximadamente 350 tutsis e a fuga de cerca de 3 mil pessoas em apenas três dias (Mendonça, 2017). 

Entre 1990 e 1993, o conflito entre os hutus e os tutsis foi usado pela oligarquia hutu em Ruanda como pretexto para sua manutenção no poder, instrumentalizando a mobilização popular numa força letal contra os tutsis. Assim, o embate entre a Frente Patriótica de Ruanda e a própria população hutu intensificou-se, levando comunidade internacional a intervir, que em agosto de 1993, promoveu os Acordos de Arusha, quais previam a garantia de retorno dos exilados e a fusão entre os exércitos nacional e rebelde, e também o estabelecimento de um governo de transição, composto por representantes de todos os partidos — sendo a UNAMIR, força de paz da ONU, responsável pela supervisão dos acordos (Mendonça, 2017). Apesar da instauração de uma força de paz, o agravamento da situação continua, e logo no fim de 1993, a liderança dos movimentos hutu passaram a acusar Habyarimana de traição, usando a Rádio Mille Collines para transmitir discursos inflamados contra Habyarimana, os acordos e a minoria tutsi. A organização do genocídio se deu com a distribuição de armas à população em geral, “bloqueios de estradas, apelos radiofônicos, exortando-os a matarem as ‘baratas’ e conclamando os tutsis a se abrigarem em igrejas e outros locais supostamente seguros, exatamente onde podiam ser mais facilmente encontrados e mortos” (Mendonça, 2017). A partir daqui, o massacre foi intensificado, deixando um total de 800 mil mortos em apenas 100 dias, Nogueira Pinto (2011) define bem o ocorrido: 
“A característica mais singular, e mais perturbadora, do genocídio ruandês foi ter sido um genocídio de proximidade. Entre abril e julho de 1994, o país dividiu-se de fato entre carrascos, vítimas e testemunhas. Foi um período em que professores mataram alunos, médicos mataram pacientes, padres mataram fiéis, irmãos mataram irmãos. As atividades do quotidiano ficaram suspensas e o país transformou-se num gigantesco campo de morte a céu aberto, num cenário em que a morte violenta, as pilhagens e violações se tornaram absolutamente banais, como se de uma extensão do campo de batalha se tratasse”.
Como, então, se posicionou a sociedade internacional frente à tais acontecimentos? Em janeiro de 1994, Romeo Alain Dallaire, general canadense comandante da UNAMIR, enviou um telegrama ao Assessor Militar da Secretaria Geral da ONU e falou com as embaixadas da Bélgica, França e Estados Unidos sobre o agravamento das tensões e o perigo de uma guerra civil em Ruanda, entretanto nada foi feito. A inércia da comunidade internacional foi em favor de seus interesses, especialmente os econômicos. Primeiramente, a aprovação do envio de 5 500 homens à Ruanda pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em maio de 1994, foi restringido pelos Estados Unidos, fazendo com que o envio acontecesse lentamente. A França, por outro lado, tentou justificar o massacre culpabilizando as “razões tribais” por inflamarem o conflito — apesar de o país ter tido papel crucial no armamento de Ruanda. Em junho de 1994, diante da pressão imposta pela imprensa francesa, uma expedição liderada pela França, mas sob bandeira da ONU, foi levada ao nordeste de Ruanda, onde a chamada Opération Turquoise ofereceu suporte às lideranças do genocídio, fornecendo uma transferência segura para o Zaire (Mendonça, 2017). 

Em razão desses acontecimentos, em novembro de 1994, através da resolução n.º 955 da Organização das Nações Unidas, foi criado o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR). O objetivo do TPIR foi o julgamento dos envolvidos no genocídio em Ruanda, acusados de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, além de graves violações ao Direito Internacional Humanitário. É exatamente a partir da prisão de Félicien Kabuga, que a questão sobre o julgamento de crimes contra a humanidade ressurge. Perguntas sobre a importância desses julgamentos e a responsabilidade dos organismos internacionais sobre eventos desta escala aparecem, propondo uma reflexão aprofundada sobre a questão. Sobre esta temática, a Prof. Dra. Janiffer Zarpelon — que recentemente lançou um livro sobre o julgamento de Pauline Nyiramasuhuko no caso do genocídio em Ruanda — deixou a sua contribuição à discussão proposta aqui. Confira na íntegra:
“Acho extremamente importante que se tenha uma estrutura como o Tribunal Penal Internacional que tem como objetivo julgar crimes contra humanidade. O TPI foi criado a partir da relevância dos tribunais ad hoc como o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) em que foi criado para julgar o massacre que aconteceu no ano de 1994, que em torno de 1.000.000 ruandenses, principalmente da etnia tutsi, foram mortos durante a Guerra Civil de Ruanda. O TPIR, apesar de ser temporário, representou num grande avanço no âmbito do direito humanitário. Este tribunal inseriu como crime de genocídio o estupro — violência sexual sem o consentimento de uma das partes — quando este ato tiver como objetivo humilhar e/ou exterminar uma determinada comunidade ou um grupo étnico. Desta forma, haver uma estrutura permanente internacional como o TPI a fim de julgar crimes contra a humanidade é de extrema relevância por penalizar estas ações, bem como contribuir no aumento da transparência das informações sobre estes atos. 
No entanto, o TPI não está livre de críticas como a demora de alguns julgamentos, como o de Pauline Nyiramasuhuko, primeira mulher a ser condenada por crime de genocídio por um tribunal penal internacional, em que durou 14 anos para finalizar o julgamento. Além disso, o crime realizado por Pauline foi visto pelo tribunal como algo singular, por esta ser mulher. No julgamento de Pauline foi considerado que quando mulheres se envolvem em massacres, conflitos e/ou na execução de mortes é algo anormal, uma anomalia, ou seja, como algo que não é característico da feminilidade. Pauline não foi a única mulher a participar na execução das mortes em Ruanda no ano de 1994, no entanto, foi a única a ser julgada pelo TPIR. Assim, foi considerado a visão da construção social de gênero em que as mulheres são frágeis, femininas, maternas, e caso realizassem tais atos, consideradas como “monstros”, desviando-se da feminilidade concebida às mulheres. Verifica-se que estes estereótipos precisam ser desconstruídos.”

Apesar de a criação do TPIR ser essencial para a construção de uma sociedade mais justa e também para a reconstrução em Ruanda, o julgamento não é a única solução para situações como essa. É essencial que haja a criação de ações que previnam novos genocídios, que apoiem a população e conscientizem sobre as consequências da violência étnica, assim como movimentos que coloquem fim na violência já existente. Diante disso, o questionamento que paira é: estão os Estados mais preocupados com a manutenção do seu status quo, ou com a prevalência dos Direitos Humanos, que tanto invocam para si? Caso a resposta seja a favor dos Direitos Humanos, o que então tem sido feito a favor das vidas negras que se perdem todos os dias nos Estados Unidos e no Brasil? Como a comunidade internacional tem agido na violência generalizada contra os indígenas no Brasil? A resposta para estas perguntas podem ser encontradas nas notícias que diariamente estampam nossos jornais, mortes e assassinatos que continuam acontecendo sem nenhuma resposta efetiva, e que nos fazem questionar os verdadeiros interesses dos Estados e organismos internacionais. Portanto, o que o genocídio em Ruanda nos ensina até hoje é a importância da discussão sobre a violência étnica, num movimento de contenção das hostilidades, mas também o papel da comunidade internacional sobre o tema e o seu dever de agir em favor das minorias afetadas.
Referências:
DE MENDONÇA, Marina Gusmão. O genocídio em Ruanda e a inércia da comunidade internacional. Revista Hades, v. 1, n. 1, p. 1–28, 2017. 
PINTO, Teresa Nogueira. Ruanda: entre a segurança e a liberdade. Relações Internacionais (R: I), n. 32, p. 45–57, 2011. 
Acusado de genocídio de Ruanda é preso na França após décadas foragido. O Globo, 16 mai. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/acusado-de-genocidio-de-ruanda-preso-na-franca-apos-decadas-foragido-24431062>.
Confirmado falecimento de um dos principais acusados de genocídio em Ruanda. G1, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/22/confirmado-falecimento-de-um-dos-principais-acusados-de-genocidio-em-ruanda.ghtml>.
VELASCO, Liziane Bainy. O tribunal ad hoc para Ruanda. Âmbito Jurídico. 01 jan. 2015. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-133/o-tribunal-ad-hoc-para-ruanda/>.

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