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quarta-feira, 20 de maio de 2020

"É para o meu TCC!": O Capitalismo e a ameaça de extinção das comunidades indígenas brasileiras, em pleno século XXI.

Por Jéssica Mantovan Veiga*

O Capitalismo é filho da expansão comercial que teve lugar na Europa ocidental, principalmente, a partir do século XV. Em debate clássico sobre a transição do Feudalismo ao Capitalismo, Maurice Dobb e Paul Sweezy concordaram, embora por motivos diferentes, que o comércio desempenhou um papel decisivo no desmantelamento das estruturas feudais, assim como na lenta edificação dos fundamentos do Capitalismo.
O Capitalismo é um modo de produção que exige como pré-requisito o desenvolvimento dos mercados, portanto, o comércio. A relação social mais fundamental do Capitalismo é a relação entre patrões e assalariados. Essa relação pressupõe a existência de homens ricos (patrões - possuidores de riqueza patrimonial física e monetária) e homens pobres (assalariados - na verdade, homens despossuídos)[1]. Estes últimos devem vender suas forças de trabalho[2] aos homens ricos, cujo objetivo através dessa operação de compra de força de trabalho é a obtenção de lucros. A compra e a venda da mercadoria força de trabalho é realizada nos mercados. Ao lado dessa relação entre patrões e trabalhadores, e da busca incessante por lucros, há pelo menos mais duas relações sociais de produção[3] típicas do Capitalismo que merecem um destaque especial: a propriedade privada sobre todas as formas de riqueza patrimonial (inclusive monetária) e a livre iniciativa.
Quando um patrão ou empresário inicia uma atividade produtiva, ele tem em mente, única e exclusivamente, o lucro (interesse privado). Então toda a produção de sua empresa deve ser canalizada para a venda nos mercados, a fim de convertê-la em dinheiro. Essa conversão de mercadorias em dinheiro é uma operação decisiva no Capitalismo, porque o lucro do empresário só se manifesta e só pode ser apropriado privadamente sob a forma dinheiro. Por isso, Marx sintetizou a fórmula de reprodução do Capitalismo através da seguinte representação: Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro, onde o montante final de dinheiro (resultado da venda das mercadorias produzidas) é superior ao montante inicial de dinheiro que foi investido na empresa. (COGGIOLA, 1998, p.53) Acontece que essa operação de venda de mercadorias sobre os mercados não é isenta de embaraços. Vender produtos no mercado depende, de um lado, da quantidade, qualidade e preço desses produtos; e de outro lado, do desejo de consumo dos consumidores. No Capitalismo, essas variáveis são absolutamente desconhecidas pelos empresários, por causa da própria natureza desse modo de produção. É que a propriedade privada e a livre iniciativa (relações sociais de produção típicas do Capitalismo) tornam possível muitos empresários se envolverem, simultaneamente, em uma determinada atividade produtiva, organizando suas empresas da maneira que melhor lhes apraz. Isso torna perfeitamente complicada e imprevisível a operação de venda dos produtos sobre os mercados. Além disso, os empresários também não possuem nenhum controle sobre o desejo de consumo dos consumidores. Assim, no Capitalismo, o mercado é, não apenas essencial para o funcionamento da economia, mas é também um verdadeiro campo de guerra, onde os empresários disputam entre si para saberem quem conseguirá vender sua produção e transformá-la em dinheiro, apropriando-se do lucro tão ambicionado. Mas como um empresário consegue sair vitorioso nessa guerra? Marx (1987, p.43), explicou assim:

Um capitalista só pode eliminar outro e apoderar-se do seu capital, se vender mais barato. E para vender mais barato sem se arruinar, tem que produzir mais barato, isto é, tem que aumentar o mais possível a produtividade do trabalho.

Essa produtividade do trabalho, geralmente, é aumentada por regulares investimentos em tecnologia. Então, a guerra que se estabelece nos mercados, leva os empresários a investirem constantemente em novas tecnologias e aumentarem a produtividade do trabalho. Porém, ao fazerem isso, tendem a aumentar ainda mais a produção e, consequentemente, tornar mais difícil a sua venda.
Segue, daqui, que a relação do Capitalismo com os mercados é bastante complexa, exigindo o desenvolvimento do Capitalismo mercados cada vez mais amplos, seja para viabilizar a venda de uma produção cada vez maior, seja para um fornecimento abundante de insumos produtivos (força de trabalho, matéria-prima, etc...), necessários para viabilizar uma produção crescente.
Esse movimento de reprodução do Capitalismo, e a necessidade de mercados em constante expansão, levou esse modo de produção a se alastrar por todo o planeta. Como previu Marx (1991, p.37):

A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em toda a parte.

Esse processo de invasão de todas as regiões do mundo pelo Capitalismo teve como objetivo azeitar as engrenagens da produção nos países capitalistas pioneiros da Europa ocidental. Portanto, ao inserir todas as regiões do mundo na lógica do Capitalismo, esse processo invasor condicionou as diversas economias do mundo às necessidades europeias, isto é, a produção de matérias-primas e força de trabalho barata (o barateamento da força de trabalho é obtido mediante à diminuição do custo de vida dos trabalhadores, ou seja, do barateamento dos produtos agrícolas). Desse modo, ao se instalar no Brasil, o Capitalismo se manifestou um verdadeiro devorador de recursos naturais e humanos. Assim foram consumidos e continuam a ser consumidos os recursos naturais e as vidas de milhões de brasileiros, fazendo pairar – ainda hoje – uma enorme ameaça sobre as comunidades indígenas brasileiras que resistiram à sanha consumista do Capitalismo.

A invasão, ocupação e exploração do solo brasileiro foram e são determinantes para as transformações radicais que os povos originários passam no decorrer de cinco séculos. Um longo processo de devastação física e cultural eliminou grupos gigantescos e inúmeras etnias indígenas, especialmente através do rompimento histórico entre os índios e a terra. (SILVA, 2018, p. 481)

No Capitalismo globalizado do século XXI, sem promover uma transformação qualitativa de sua economia e sem conseguir romper com os vínculos que o atam a uma posição subordinada na divisão internacional capitalista do trabalho, o Brasil parece ainda preso à lógica da exploração de recursos naturais. Nesse contexto, as ameaças às terras e aos povos indígenas se perpetuam.  

Em razão do crescimento econômico que o país vem experimentando nos últimos anos, onde a agricultura desponta como a grande geradora de divisas, é possível vislumbrar um cenário em que a chamada fronteira agrícola vai encostar em breve nas terras indígenas situadas na Amazônia, criando um ambiente de maior pressão contrária à manutenção e controle desses territórios. No dia 08.12.2010, o IBGE divulgou o primeiro mapa nacional do uso da terra no Brasil, revelando que a pecuária se expande da região Centro-Oeste em direção ao Norte, concentrando-se principalmente nos estados do Maranhão e Rondônia. O mapa indica que a expansão da agricultura e da pecuária na região Norte já se aproxima dos limites das terras indígenas. Segundo Ricúpero, a agricultura brasileira espera crescer mais de 40% nos próximos anos. Estima-se que o país controlará um terço do comércio mundial de carne e metade do de açúcar, consolidando-se ainda como o celeiro do mundo. Não é difícil imaginar que isso vai agravar a pressão sobre as terras indígenas, inclusive sob a alegação de que a agricultura precisa de espaço para se expandir. (ARAÚJO,  2013, p. 140-141)

Por isso, hoje se faz absolutamente indispensável explicar, denunciar e resistir a esse modelo de Capitalismo que, no Brasil, avança cega e indiferentemente vislumbrando exclusivamente a exploração desenfreada de recursos naturais e humanos, e ameaçando de extinção as comunidades indígenas locais.  


* Acadêmica do 7º período do Curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.
Texto preparado sob a orientação acadêmica do Prof. Dr. Carlos Magno Vasconcellos




Referências Bibliográficas.

ARAÚJO, Ana Valéria. Desafios e perspectivas para os direitos dos povos indígenas no Brasil in  SOUZA FILHO, Carlos F. Marés; BERGOLD, Raul Cezar (Orgs). Os direitos dos povos indígenas no Brasil: desafios no século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013, p. 139-166. Disponível em: http://www.reformaagrariaemdados.org.br/ sites/default/files/Os%20direitos% 20dos%20povos%20ind%C3%ADgenas%20no%20Brasil%20-%20desafios %20no%20s%C3%A9culo%20XX.pdf

BEAUD, Michel. História do Capitalismo: de 1500 aos Nossos Dias. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COGGIOLA, Osvaldo. Capitalismo: origens e dinâmica histórica. Santiago de Chile: Ariadna Ediciones, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/10020357/Hist%C3%B3ria_do_Capitalismo_das_Origens_at%C3%A9_a_I_Guerra_Mundial [sobretudo os tópicos 11, 12, 13, 19, 29, 30, 40 e 41]
MACHADO, João.  Internacionalização do Capital: uma fase perversa. São Paulo em Perspectiva, p.9-14. São Paulo, 1998. Disponível em: 1998.
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Moscou: Edições Progresso, 1987.
MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. São Paulo: Global Editora, 1987.

PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976.

RANGEL, Lúcia Helena (Coord.) Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2018.  Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2019/09/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2018.pdf

SILVA, Elizângela Cardoso de Araújo. Povos indígenas e o direito à terra na realidade brasileira. Serv. Soc. Soc.  no.133, São Paulo set./dez. 2018, p. 480-500. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sssoc/n133/0101-6628-sssoc-133-0480.pdf

SOUZA FILHO, Carlos F. Marés; BERGOLD, Raul Cezar (Orgs). Os direitos dos povos indígenas no Brasil: desafios no século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013. Disponível em: http://www.reformaagrariaemdados.org.br/ sites/default/files/Os%20direitos%20dos%20povos%20ind%C3%ADgenas%20no%20Brasil%20-%20desafios%20no%20s%C3%A9culo%20XX.pdf

 



[1] A origem dessas duas classes de homens, isto é, dessas duas classes sociais já foi exaustivamente mostrada por K. Marx em suas obras.
[2] Representa o potencial de realizar trabalho que é inerente à natureza humana.
[3] “Na produção, os homens agem não só sobre a natureza, mas ainda uns sobre os outros. Não podem produzir sem colaborarem de maneira determinada e sem estabelecerem um intercâmbio de atividades. Para produzir, os homens contraem determinados vínculos e relações uns com os outros, e é através desses vínculos e relações sociais que se estabelece a sua ação sobre a natureza, que se efetua a produção.” (MARX, 1987, p.31)

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