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segunda-feira, 22 de julho de 2019

Me indica um filme? - Enterrem meu coração na curva do rio, a perspectiva pós colonialista na obra de Dee Brown.






Por Lígia Penia


“Seu Deus nos diz:“crescei e multiplicai-vos” , mas como terei esposa e filhos se não posso sustenta-los nas terras que me me propõe”?
Touro Sentado, chefe indígena

O pós colonialismo faz parte do grande grupo do terceiro debate nas relações internacionais. Esse é o grupo pós positivista que traz à tona perspectivas muito diferentes das clássicas dentro da área, e os estudos relacionados ao tema em questão serão especialmente diferentes por adotarem perspectivas teóricas marginais.

Na perspectiva imperialista há o centro, o colonizador, e os outros sob seu domínio. Do centro vem o domínio material, que se dá a partir da tomada das terras, por exemplo. Pensando a partir da perspectiva pós colonialista, existem vários centros, e se apenas alguns poucos têm poder, a desigualdade se vê nas margens, mas não apenas materialmente, mas também no processo que segue após a descolonização, no qual se percebe que a visão de mundo permanece, o padrão de vida, os comportamentos: a cultura do dominador que incide sobre o dominado, são exemplos o modo pelo qual a história foi contada, as referências e a aplicação do pensamento. A desconstrução pós colonialista questiona essa forma de ver o “outro”, e propõe recontar a história reconhecendo o “eu”, além de propor a partir daqui novas alternativas.

Para chegarmos aí, a proposta é analisar novamente o que conhecemos como correto, óbvio, porque a partir daí podem-se compreender outras verdades, e sociedades completas, inclusive, que sob esse véu foram violentadas material e ideologicamente.
Sociedade relevante à essa análise é a sociedade indígena na América do Norte, das tribos Dakota, Ute, Soiux e Cheyenne retratadas por Dee Brown em seu livro “Enterrem meu Coração na Curva do Rio”. O autor e historiador dedica seus estudos à história americana: no título original “Bury My Heart at Wounded Knee”. Wounded Knee foi o massacre da população indígena na reserva de Pine Ridge, que seria pertencente ao povo Dakota. O filme, de 2007, é uma interpretação muito bela da obra.

Holywood é representação, como seu próprio nome diz, de uma terra ‘sagrada’, mas os seus filmes de faroeste mostraram a morte de uma população que não teve a oportunidade de mostrar o seu modo de compreender seu sagrado ali. “Enterrem meu coração à margem do rio”, portanto, é oportunidade nova de compreender a história a partir da perspectiva indígena, esquecida até então.

O filme conta a história dos acordos entre o senado e os indígenas sobre demarcação de território. Num primeiro contato, muitos índios foram mortos com a vinda dos europeus à região, agora o senado compreendia estar numa nova fase de articulação pacífica. É uma obra cheia de significados do começo ao fim, mas dois momentos chamam especial atenção.

No início do filme, um menino é escolhido para ter formação como médico, ele é retirado da comunidade indígena que vivia para viver num padrão europeu. Ohiyesa, na formação primária, está sentado na sala de aula quando a professora faz uma pergunta e ele levanta sua mão para respondê-la. Ela o diz que apenas poderá ouvi-lo quando tiver escolhido seu nome cristão. A partir daí Ohiyesa passa a se chamar Charles. Charles realmente existiu.

O nome tem grande importância na vida de uma pessoa, já que nele estão as raízes sociais. Seu nome era característico de outra cultura, e como ela não era permitida ali, só poderia começar a falar ao se enquadrar no padrão cristão europeu enquanto Charles. Foi um ato de racismo e humilhação, não apenas da professora, mas de toda aquela sociedade. Mais tarde, quando Charles já é adulto, tem dificuldades em compreender algo diferente do que viu na sua formação, por isso apoia os projetos dos “homens brancos”. Ao voltar à sua família indígena, começa a compreender tudo o que viveu e a realidade e sofrimento daquele povo. Passa então de apoiador para crítico, por isso de médico oficial para desempregado e atordoado. Depois de meses com dificuldades lhe é oferecido um trabalho para que se sustente: o de escolher nomes cristãos para pilhas de índices com nomes de indígenas, tudo para facilitar a identificação dessas pessoas pelo governo.

O segundo momento é quando um grupo de homens do governo vai até as terras indígenas para fazer uma proposta: demarcariam terras individuais para cada família, onde poderiam plantar e morar. As terras remanescentes da reserva seriam vendidas, por preço ínfimo, e o dinheiro lhes seria pago. Parece uma proposta muito boa, segundo a lógica dos novos americanos, e aos seus olhos irrecusável - porém não faz sentido algum perante a lógica indígena por diversos motivos:  os índios não plantavam e apenas comiam de vegetais e frutas o que já havia naturalmente nascido, índios caçavam, o que não pode ser feito na propriedade privada, já que a caça exige vastos terrenos e, por último, como Charles mesmo pontua no filme, na lógica indígena não existe a ideia de propriedade privada, não se poderia nem compreender isso na linguagem já que nunca existiu para eles. Aceitar a proposta significaria submergir na lógica do outro, por isso não o fizeram, já que nada daquilo fazia sentido. Algum tempo depois definitivamente deixou de existir, porque o massacre eliminou todos.

O autor, Dee Brown, faleceu em 2002, tido como referência enquanto historiador especialista da história indígena americana, e, enquanto escritor, deixou uma vasta biblioteca com diversos títulos sobre o assunto.

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