A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.
Violência autoinfligida como resposta aos padrões da atualidade
Gustavo Andretta Ferreira *
A necessidade de pertencer aos diversos ambientes que habitamos e que cada vez exigem mais de nós com base em padrões de beleza, sucesso, moda, raciocínio, entre outros aspectos, nos persegue constantemente. Isso faz com que precisemos nos moldar, em nossos corpos e nossos comportamentos, em busca de corresponder às expectativas. Nessa busca por aceitação e pela perfeição diante dos modelos da atualidade, acabamos cometendo violências banalizadas contra nós mesmos que ou se tornam pequenas em relação ao dano maior que vai ser o fracasso e a rejeição, ou são alternativas de amenizar os efeitos dos dois.
O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, encara essas pressões sociais dos padrões como um tipo de violência sutil, que não necessita do uso de agressões diretas, de coerção exterior. Ela é, por outro lado, uma violência sistêmica que atinge a sociedade como um todo. Portanto, até a noção de liberdade que temos pode ser colocada em xeque, pois as escolhas são direcionadas por parâmetros, e é possível afirmar que não há o livre arbítrio de fato: tudo é policiado para que se siga os moldes atuais e quem faz o papel da polícia, agora, somos nós mesmos. Se a coerção exterior já não existe, é porque ela deu lugar ao que Han chama de autocoerção. Han diz que “hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”, e nós acreditamos que não somos mais submissos. “Do que você está reclamando?”, é a pergunta que reverbera na atualidade – “Foi VOCÊ que escolheu fazer isso”[1]. Assim, a coerção interna torna-se mais eficiente para extrair um desempenho mais intenso, pois ela é acompanhada da falsa sensação de liberdade.
Essa exploração, motivada pela demanda excessiva de produção e desempenho, acaba por produzir danos na nossa mente. É por isso que Han configura nossa época como uma era em que as patologias são neurais: “[c]ada época possuiu suas enfermidades fundamentais (...). Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não e definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI”[2].
Seguindo o raciocínio de Han, essa virose neural causada pela nossa própria autoexploração faz com que nos consumamos e com que surja a autoagressividade, ou seja, provocamos violências em nosso corpo, física e psicologicamente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define e subdivide essa violência autoprovocada, ou autoinfligida, em comportamento suicida e autoagressões. Muitas vezes os dois andam lado a lado, mas as autoagressões podem não ser só aquelas escancaradas, como se cortar. O fato de alterar a naturalidade do corpo por questões estéticas também é por si só uma violência, por exemplo.
Numa época globalizada, em que a transparência e a queda de fronteiras são um mote, somado ao medo da não aceitação e não pertencimento, o narcisismo e a hiperexposição (à qual Han se refere como pornográfica[3]), crescem enormemente, chegando ao ponto em que se transformam em exibicionismo e voyeurismo potencializados pelas redes sociais e seu abuso. Com elas, todos se vigiam mútua e constantemente, dada a necessidade de expor nossa felicidade, saúde e vida no geral. O ser humano agora precisa ser seu próprio objeto de propaganda e por isso o corpo é seu cartão de visita, é ele que antecipa toda relação antes que a interação de fato aconteça, como por exemplo, antecipa o conteúdo sexual sem que haja sexo. Assim, o corpo precisa ser ideal, seguindo o padrão dos corpos propagados pelos novos formadores de opinião e meios de comunicação da nossa época, as redes e seus influencers. Para Han, “[a] ‘alegria’ que se encontra nas redes sociais tem sobretudo a função de elevar a autoestima narcisista de seus consumidores, na medida em que oferece o ego ali exposto como uma mercadoria”[4].
No Brasil, o padrão de beleza é caótico: enquanto se exalta a volúpia, os músculos definidos, nádegas avantajadas, grandes peitos e os lábios carnudos, também se exige a pureza, a ausência de gordura, a falta de pelos, a vagina infantil. Não por acaso, o país é o segundo maior consumidor de cirurgias plásticas com fins estéticos no mundo e líder desse tipo de procedimento entre os jovens, que têm como objetivo se aproximar do corpo ideal, por mais meticuloso e sintético que ele possa ser. Próteses de silicones, lipoaspiração, bichectomia, ninfoplastia, rinoplastia, são cada vez mais comuns e feitas cada vez mais cedo.
Slavoj Žižek (2014) refere-se ao abuso das cirurgias estéticas como uma atitude tendenciosa do nosso sistema, perpetuando essa confusão que existe entre livre arbítrio e aderência dos padrões como vontade. A modificação não é feita porque o sujeito não se sente bem em relação à determinada parte do corpo ou quer prevenir uma possível falha futura: isso é uma ilusão, já que o sistema e seus padrões fizeram com que essa parte do jeito que está seja indesejável, coagindo o sujeito a querer modificá-la. Segundo o autor, “[é] intolerante quando não é dado aos indivíduos de outras culturas a liberdade de escolha – o que é evidente a propósito de questões como a excisão clitoridiana, o casamento infantil, o infanticídio, a poligamia e o incesto. No entanto, ignora as terríveis pressões que, por exemplo, compelem as mulheres das nossas sociedades liberais a se submeterem a práticas como a cirurgia plástica, os implantes cosméticos e as injeções de botox, que se destinam a mantê-las competitivas no mercado sexual”[5].
Entretanto, não são só as mulheres que se sujeitam aos implantes, cortes e mutilações da cirurgia plástica. Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica o número de processos estéticos masculinos quase quadruplicou entre 2012 e 2017, e os homens também precisam se manter “competitivos”. Porém, a autoviolência mais evidente nos homens ainda não são as cirurgias estéticas, mas o abuso do fitness, não exclusivo do sexo masculino. O excesso de tortura corporal e hormonal por meio da musculação desenfreada, da ingestão de anabolizantes, do crossfit e da filosofia do no pain no gain, rompendo as fibras dos músculos para alcançar a deformação, também conhecida como shape trincado, não tem apenas aquela premissa de saúde e beleza, ou melhor, o padrão de saúde e o padrão de beleza, elas correspondem ao exibicionismo e padronização também.
Outros modismos, por mais cool que sejam, não escapam dessa lógica. Gastar horas arranhando e injetando tinta nas camadas da pele não é mais sinal de transgressão, uma vez que virou norma. Por mais que digam que tatuagens têm seus significados, e mesmo que tenham, eles já foram banalizados. A função principal delas agora é tornar alguém descolado. Mas, se todo mundo tem, isso deixa de ser descolado, e só encaixa o sujeito de novo no padrão. As tatuagens tribais, o símbolo do infinito, o coração minimalista, a âncora old school, as frases de música, os animais sazonais e genéricos, leão, lobo, coruja: todas elas são novos adereços que podem inserir alguém numa determinada tribo, ou apenas serem ostentados ao vivo e no Instagram.
Por fim, acabamos não escapando da máxima “violência só gera violência”. Pode não ser na mesma forma com que sofremos – uma violência invisível ao olho, sem autor identificável, que não pode ser respondida na mesma moeda. A alternativa, então, é responder em nós mesmos e, consequentemente, propagá-la. A diferença é que os sintomas são múltiplos. Ao mesmo tempo que quem pode pagar pelos processos estéticos continua a fazer suas “festas do botox”, ingerir seus esteroides, pagar o estúdio de crossfit, fechar o braço com o tatuador badalado, ainda assim ainda se degrada mentalmente. A classe alta não está livre da depressão e do suicídio, até porque a violência auto infligida é só uma resposta, não significa que é a correta e vai resolver a questão. Quem não tem os mesmos recursos, por sua vez, perece mais rápido na ansiedade, estresse, depressão, ou acha alternativas para seguir os padrões, injeta synthol nos músculos e paga em diversas prestações por um processo clandestino em uma cobertura na Barra da Tijuca sem as condições pra realizar o procedimento estético.
REFERÊNCIAS
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço, Editora Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência, Editora Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. Topologia da Violência, Editora Vozes, 2017.
ZIZEK, Slavoj. Violência. Seis reflexões laterais, Boitempo Editorial, 2014.
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[1] ZIZEK, 2014, p. 99.
[2] HAN, B. Sociedade do cansaço, 2015, p. 7.
[3] HAN, B. Sociedade do cansaço, 2015, p. 209. A sociedade exposta é uma sociedade pornográfica, onde tudo está exposto e voltado para fora. Esse excesso de exposição transforma tudo em mercadoria e as correntes ininterruptas de hiperinformação e hipercomunicação são obcenas, à medida que transparecem tudo sem pudor.
[4] HAN, B. Topologia da violência, 2017, p. 73.
[5] ZIZEK, S. Violência. Seis reflexões laterais, 2014, p.97.