A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.
O uso do racismo como Violência Institucionalizada
O caso do Apartheid na África do Sul
Tiago Viesba *
Dentro de um escopo de consequências, frutas da colonização do continente africano, e em maior grau, do Imperialismo do final do século XIX temos o surgimento de ideologias raciais e a ideia da superioridade da raça branca, em detrimento dos (não) brancos. Um dos casos mais marcantes dessa dominação é, sem dúvida, o que ocorreu na África do Sul no decorrer do século XX.
O regime do Apartheid (que perdurou entre 1948-1994), o qual institucionalizou o segregacionismo das raças não brancas naquele Estado, pode ser compreendido através da percepção de construção de uma arquitetura jurídica que legitimou o racismo (um produto cultural – aqui no sentido de invenção - de relações históricas, sociais e de “tradições”). Para tanto, utilizou-se das mesmas bases do Estado-Nação (E.N.), como forma de criar uma legitimidade a tal “separação”. Assim, com o intuito de se entender como essa forma de violência institucional afetou a população negra daquela época, há necessidade de aproximação de alguns conceitos. Também, se buscará com isto, o desenvolvimento de um instrumento de observação que melhor permita elucidar o uso da violência estrutural como forma de segregar a sociedade dentro de um território, através do uso do espaço atrelado a construção de uma narrativa racista.
Um primeiro conceito, necessário para desvendar essa arquitetura jurídica em questão, é a ideia de nação. Esta é base legitimadora do Estado moderno e de suma importância para a estruturação do Apartheid. Segundo Benedict Anderson (2008), a nação, um conceito melhor comparado a um “parentesco” ou “religião”, pode melhor ser entendida como “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. Neste sentido, ela é imaginada porque os membros jamais entrarão em contato com a maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles. Ela é limitada porque mesmo a maior delas, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações - nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade.
Ela é soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da história humana de percepção do pluralismo religioso e da essência entre princípios e a extensão territorial de cada credo, as nações sonham em ser livres — e, quando sob dominação divina, então diretamente sob sua égide. A garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano. Por último, ela é imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre e concebida como uma profunda camaradagem horizontal.
Durante a história da humanidade houve quatro ondas do século XVIII ao XIX: 1.O nacionalismo como instrumento de legitimação das lutas de independência colonial na América; 2.Nacionalismo Oficial da Europa e a consolidação dos Impérios europeus; 3.O imperialismo, lógica de dividir para conquistar as sociedades africanas e asiáticas que passam a ser subordinadas; e 4.As lutas de independência neocoloniais do século XX. A nação está ligada pela língua, religião, passado histórico comum, símbolos nacionais e cultura. Não existe nação entre dois indivíduos apenas. Devo me imaginar como parte de um grupo muito maior e mesmo que nunca encontre todos, tenho a convicção que eles se sentem tão nacionais quanto eu.
Outro conceito relevante para esse debate é o de tradições (inventadas) estudado por Eric Hobsbawm. Estas se traduzem como invenções sociais que dão a ideia de continuidade e ligação com o passado. São instrumentos de consolidação/subordinação dos seres humanos á lógica do E.N. Dão a impressão que sempre foi assim, oferecendo legitimidade às bases dessas comunidades imaginadas formando uma simbologia numa materialidade. Elas podem tanto manter relações positivas, quanto negativas. Transmitindo a ideia de se sentir parte integrante de um grupo e dentro dessa nação, compartilhando determinados símbolos, celebrações e cerimônias. Ou o contrário, construindo a ideia do outro - aquele que não faz parte deste grupo por não entender nossas tradições.
Desta forma, a construção do E.N. veio num entrecho posterior ao surgimento das nações. Sendo que, o Estado é diferente da nação, que é diferente do E.N. O primeiro é constituído por uma tríade - Território, População e Governo. Estes elementos balizam as tentativas de exercício do poder, ou seja, numa lógica de inversão, eles criam uma dependência de quem quer exercer o poder em relação ao Estado (devem ser trabalhados). Já a nação, passa a ser adotadas como instrumento de legitimidade de existência do Estado, uma vez que para a lei ser igual para todos, todos precisam ser iguais para a lei. Assim, utiliza-se da ideia de nação para justificar o Estado, este tem um vínculo jurídico com sua nação e a ela responde como “protetor”.
Por consequência deste movimento, num conjunto de nacionais aparecem a figura do nacional e o (não) nacional. Cada indivíduo deveria ser pertencente a uma nação apenas, ou seja, o estrangeiro, nesta lógica, caracteriza-se como o pertencente a uma determinada nação diferente da minha. No meu território, ele é o não nacional, não pertencente. Uma vez que os Estados têm direito (soberania) de exercer uma política de repressão ao de fora, com a orientação de proteger/priorizar os seus nacionais. Aqui podemos ver a lógica do outro, individualização de um coletivo.
Portanto, essas estruturações jurídicas vieram no entrecho de permitir a estruturação de um regime segregacionista como o Apartheid. A África do Sul foi uma colônia europeia no contexto do Imperialismo e teve influências holandesas e britânicas principalmente. Como fruto do cientificismo da época, atrelado ao surgimento das ideias do “fardo do homem branco”, criou-se o discurso que legitimou a dominação desses povos “menos civilizados”. Como consequências diretas desse período, tivemos a instrumentalização, na África do Sul, do regime do apartheid (que significa separação). Este era baseado em uma segregação racial entre brancos e não brancos.
Tal regime era baseado na construção de leis segregacionistas dos mais diversos exemplos e também, com a estipulação de fronteiras, os bantustões (países dentro da África do Sul, onde os negros viverem isolados), como Lesoto e a Suazilândia. A lógica era muito parecida, ao se negar a nacionalidade sul africana – no período, entendida como fatores como a língua, a raça e as tradições de uma cultura europeia que remetiam a época da colonização -, então meu Estado pode adotar medidas de repressão e segregação baseadas neste tom racial. O estrangeiro é o outro. Podia-se assim, a partir desta estrutura jurídica institucionalizada, justificar a exclusão e legalizar o preconceito racial – fruto de um passado histórico colonial e que passou a ser incorporado como componente da nacionalidade sul africana.
*Tiago Viesba é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e pesquisador do Grupo de Pesquisa "RPSI - Redes e Poder no Sistema Internacional".
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 1° Edição, 5° Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 1° Edição, 8° Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BOBBIO, N. et al. (Org.). Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 2007. 2v.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. 6° Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. África do Sul – História, Estado e Sociedade. Brasília: FUNAG/CESUL, 2010.