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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Redes e Poder no Sistema Internacional: Guerra de Procuração e a Guerra no século XXI - O mosaico libanês no fogo cruzado


A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.


Guerras de Procuração e a Guerra no Século XXI - O mosaico libanês no fogo cruzado


Heloísa Orsatto *

Infrequentemente os grandes veículos de informação ou a academia nos trazem notícias ou conceitos que remetam as guerras de procuração. Uma lacuna sobre o conceito de um elo que vem amarrando os conflitos e as relações internacionais desde o fim da Guerra Fria, e que afirma-se como uma das bases mais sólidas para o entendimento da complexidade e da evolução dos conflitos contemporâneos e estudos estratégicos e de segurança.

Segundo Karl Deusch, em 1964, as guerras de procuração poderiam ser entendidas como “...um conflito internacional entre duas grandes potências estrangeiras, acontecendo no solo de um terceiro país, disfarçado como um conflito interno desse último, e utilizando-se de seus recursos, territórios e força militar para atingir preponderantemente objetivos e estratégias estrangeiras” . Mas esse conceito, mesmo que com perfeita aplicação atual, traz algumas problemáticas no que se refere a metamorfose dos conflitos no decorrer do século. A definição de Karl é centrada no Estado, e acaba por ignorar atores não-estatais, como grupos insurgentes, que cada vez mais tomam espaço dentro desses conflitos. Isso implica a ausência de um poderio absoluto sobre o país procurado, mostrando que o conflito não seria possível se no país já não houvesse terreno e condições para insurgência.

Esse é o cenário onde se deu a Guerra Civil Libanesa (1975-1990), que englobou a invasão israelense ao país em 1982.

A complexidade do panorama libanês, como bem aponta Márcio Scalercio , é intimidadora. Os grupos políticos que compõe o governo são antagônicos e historicamente dependentes de um frágil equilíbrio que garanta que não troquem tiros simultaneamente entre si enquanto tentam administrar um país recheado das mais diversas comunidades e vizinho de duas grandes potências: Israel e Síria.

O contexto de Guerra Fria – como o ocidente já estava bem acostumado – e a familiar teoria dos jogos que a regia, já não pode mais ser utilizado para uma análise precisa dos conflitos presumivelmente polarizados do século XXI. A ascensão de grupos insurgentes, juntamente com uma nova hostilidade por parte da população frente à guerras – a Síndrome do Vietnã - e o avanço das tecnologias movidas pela percepção de risco dos Estados começam a entrar e são fundamentais na equação do conflito. A percepção de risco, segundo Andrew Mumford, é a inviabilidade e injustificabilidade de um conflito direto, que contaria com custos (políticos, financeiros ou materiais) e a saia justa que o Estado teria de enfrentar para explicar a legitimidade de um conflito que poderia ser evitado. Mas, segundo o mesmo autor, os próprios países procurados possuem seus sistemas particulares, complexos e intrincados, que eventualmente começam a desenvolver maiores percepções de autonomia, questionando a natureza e as reais intenções por trás do conflito.

Mesmo no cenário de esgotamento pós-1945, os países ainda precisavam de uma maneira que não fosse a guerra “estado vs estado” propriamente dita para alcançar interesses nacionais ou conquistas ideológicas. E esse novo comportamento marcou a mudança na natureza do sistema internacional e de como ele opera. Essa mudança é caracterizada por quatro pontos chave: a insustentabilidade do apetite público por conflitos e a recessão econômica mundial pós-Vietnã; o crescimento e ascensão de empresas militares privadas (PMC) e a inserção do espaço cibernético como uma ofensiva indireta.

Uma análise da política externa israelense nos mostra um imperativo étnico anacrônico e dificilmente defensável, respaldada no “demographic threat” , que pode ser essencialmente definido como o medo de, em algum futuro possível, Israel atingir uma população de maioria árabe que votaria o Estado abaixo. Nesse cenário, Israel ainda se vê frente ao Irã, país que pós Revolução Iraniana emergiu como o maior território capaz de contestar a hegemonia americana no Oriente Médio, criando uma atmosfera de The New Middle East. A Síria também é uma preocupação, e embora fraca, a influência iraniana cria conexões e militâncias anti-israelitas. E é nesse contexto que o país dos cedros é trazido para dentro do conflito.

Quando posicionadas em território libanês no contexto da Guerra Civil, as forças sírias foram o primeiro alvo de algumas das políticas decorrentes do medo israelense citado acima. Com amparo e patrocínio americano, Israel possuía (e ainda possuí) um dos mais avançados programas de monitoramento e operação de drones da atualidade, e já em 1982 contava com esse elemento de alta tecnologia, que até mesmo para o ocidente era surpreendente, para as tropas sírias foi então um sobressalto. Monitoradas exaustivamente pela FDI (Força de Defesa Israelense) com aparelhos sofisticados, foi constatada a pouca movimentação síria, que acabava facilitando cada vez mais seus a previsão israelense de seus movimentos e tornou um mapeamento detalhado dos acampamentos possível, e foi aí que Israel entrou com os drones em cena.

Quando o dispositivo adentrava o espaço áereo onde as tropas estavam, todos seus sistemas de defesa eram acionados, pois não possuíam tecnologia o suficiente para dizer se a ameaça era um avião de ataque completo ou um drone. Porém logo atrás dos drones vinham os aviões da FAI (Força Aérea Israelense) munidos com mísseis anti-radiação, que eram guiados por ondas emitidas por radares (os mesmos sírios que não conseguiam discernir um equipamento do outro). Além de identificar as tropas, os drones também interferiam nos sistemas de comunicação e nos radares adversários. 

O Líbano, por sua vez, desde sua criação como Estado nunca foi um país convencional. Criado a partir de uma ambição francesa em ter um estado cristão no Oriente Médio, o país cresceu e junto com ele cresceram diversas comunidades que hoje (e desde o último censo, extremamente desatualizado) compõe o governo. Tal composição se dá na divisão de cargos entre cristãos maronitas (maioria não numérica mais poderosa do país), muçulmanos sunitas e muçulmanos xiitas. Cada comunidade visava aumentar seu peso político e conseguir mais cadeiras no Parlamento. No entanto, a desunião entre os muçulmanos (também haviam comunidads drusas) era curiosa, fato que se deu até a entrada da OLP e dos palestinos no país. Xiitas que majoritariamente habitavam o sul (fronteira com Israel) cresciam em seu ativismo político e inicialmente possuíam franca amizade com os judeus e inimizade com os palestinos e guerrilheiros da OLP. Mas a presença cristã maronita como soon-to-be aliada dos israelenses converteria o cenário.

Análises mais profundas que serão abordadas na pesquisa indicam um caminho tortuoso para a compreensão da trajetória dos conflitos que moldam o cenário internacional hoje, e principalmente, na perspectiva não-ocidental. Uma nova concepção da Teoria dos Jogos começa a dar as caras, e embora as guerras de procuração tenham sido presentes durante toda a história, novos elementos começam a despontar, mostrando que, afinal de contas, o verdadeiro xadrez nunca teve somente dois jogadores.

* Heloísa Orsatto é acadêmica do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa "RPSI - Redes e Poder no Sistema Internacional".

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