Páginas

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Direito Internacional em Foco: O Caso Lótus

A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão da monitora da disciplina, Marina Marques. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


O CASO LOTUS E O DIREITO DO MAR

Fernanda Passos Martins  e Giordanna Biasuz

O caso Lótus, julgado entre janeiro e setembro de 1927 pela Corte Permanente Internacional de Justiça, trata de uma colisão em alto mar ocorrida entre um navio francês e um navio turco. O resultado do abalroamento foi a morte de oito tripulantes turcos, enquanto os demais foram resgatados pela embarcação francesa e levados até território turco.
A colisão ocorreu no dia 2 de agosto de 1926 no Cabo Sigri, próximo à costa da Turquia, momentos antes da meia-noite. O Boz-Kourt era um navio turco que colidiu com o navio francês Lotus, que empresta seu nome ao caso. Este último era um paquete - expressão que deriva de packet boat - que levava encomendas e correspondências, além de passageiros.
O choque entre as duas embarcações levou ao naufrágio do Boz-Kourt, que partiu-se ao meio. Apesar dos esforços franceses para salvar os marinheiros turcos, 8 destes morreram afogados. Os franceses conseguiram, no entanto, salvar 10 marinheiros - entre eles o capitão Hassan Bey. O navio Lotus atracou em Constantinopla no dia 3 de agosto. No mesmo dia, o inquérito foi iniciado pelas autoridades da Turquia, que prontamente intimaram e detiveram o tenente Demons, responsável pelo navio Lotus, sem notificar o Consulado Francês.  
Os responsáveis por ambos os navios sofreram prisão preventiva por acusação de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. O tenente Demons chegou a argumentar que a justiça turca não poderia julgar o caso, mas as autoridades discordaram e o processo seguiu em curso.  A Corte Criminal de Istambul acatou, no entanto, o pedido de fiança do tenente francês - que poderia responder em liberdade. Finalmente, o tenente Demons foi condenado a 80 dias de prisão e o pagamento de multa, o capitão Hassan Bey recebeu pena mais severa, mas a apelação do promotor turco acabou por suspender a execução da sentença.
 Os franceses não aceitavam o julgamento das autoridades turcas, o que gerou uma série de protestos. Eventualmente, França e Turquia concordam em submeter o caso à Corte Permanente Internacional de Justiça. A França foi representada por M. Basdevant, enquanto a Turquia por Mahmout Essat Bey, Ministro da Justiça deste país na época.
A análise feita em relação ao caso foi sobre a competência da Turquia de penalizar ou não o capitão da embarcação francesa em virtude de um acontecimento em Alto-Mar - caracterizado por todas as águas além do limite das águas territoriais, de acordo com Accioly, Nascimento e Silva e Casella. Ao estudar o Tratado de Lausanne, assinado pela Turquia em 24 de julho de 1923 junto com as potências vencedoras da 1° Guerra Mundial, no qual há o 15° Artigo que remete ao respeito com a normas do direito internacional que o governo turco se comprometeu a ter, a Corte Permanente Internacional da Justiça indaga sobre a existência de uma norma internacional que proíba as autoridades turcas de processar o nacional francês.
Os franceses afirmavam que os princípios de direito internacional - aos quais o artigo 15° do Tratado de Lausanne fazia alusão - asseguravam a competência francesa de penalizar seus nacionais e pediam uma indenização ao tenente Demon pelo seu tempo preso e pela fiança paga. Os referidos princípios são de que os navios representam domínio flutuante do Estado, ou seja, o direito que vigora é o da bandeira do navio e o princípio do alto-mar como patrimônio comum da humanidade, isto é, sem ser propriedade de nenhum Estado.
Os turcos relevaram a questão da competência e focaram sua argumentação na aplicabilidade de sua sentença. A França permaneceu salientando os princípios internacionais, mas como réplica destaca que o fato de um nacional ser vítima de um crime não dá direito ao Estado de aumentar sua jurisdição e julgar o ato que foi cometido por um estrangeiro, fora de seu território. Além de também fazer menção aos danos morais e materiais sofridos pelo Tenente Demons e pedir uma indenização no valor de 6.000 libras turcas.
Em sua tréplica, o representante turco recorre ao conceito de território por extensão e salienta que turcos morreram no acidente que envolvia uma embarcação turca, assim, a França não teria nenhuma competência de julgar os responsáveis e a Turquia apenas seguiu seu código penal interno e consequentemente não existiriam razões para que o Tenente Demons fosse indenizado.
Metade da Corte votou a favor da Turquia e a outra metade a favor da França, assim cabendo a decisão ao presidente da Corte. A doutrina da territorialidade serviu como base para a maioria dos votos. De acordo com essa doutrina, o navio serviria como um prolongamento do domínio do estado. O conceito de territorialidade foi essencial para o desenrolar do caso, uma vez que o presidente da Corte Permanente Internacional de Direito à época era Dionisio Anzilotti, que buscava no pacta sunt servanda (os pactos assumidos devem ser respeitados) a norma fundamental do direito internacional (ACCIOLY, NASCIMENTO E SILVA e CASELLA. 2012, P. 137).
A decisão do tribunal foi a seguinte: “o que se passa a bordo de um navio em alto-mar, deve ser considerado como se tivesse ocorrido no território do estado cuja bandeira o navio usa. Se, pois, um ato delituoso, cometido num navio, em alto-mar, produz seus efeitos sobre um navio que usa outra bandeira ou sobre um território estrangeiro, devem ser aplicados ao caso os mesmos princípios que se aplicariam se se tratasse de dois territórios de estados diferentes, e, portanto, deve concluir-se que nenhuma regra de direito internacional proíbe ao estado, de que depende o navio, onde os efeitos do delito se manifestaram, considerar esse delito como se tivesse sido cometido no seu território e exercer a ação penal contra o delinquente”.
A Corte concluiu, portanto, que existiam jurisdições concorrentes em casos de abalroamentos. Em casos de colisões em alto-mar em que o culpado é um navio de guerra, a jurisdição que deve julgar é a que pertence o navio. Finalmente, no caso das colisões em alto-mar entre navios de diferentes bandeiras, a competência penal para julgar o caso não exclui a competência concorrente dos dois estados. Uma vez que a Turquia provou possuir extraterritorialidade prevista em sua legislação penal para aquela hipótese, considerando, ainda, que a embarcação não era militar, a Corte recusou o pedido da França. A jurisdição extraterritorial, acontece nos casos em que o Estado exerce a sua jurisdição sobre fatos ocorridos fora do seu território. Existem vários critérios que podem justificar a jurisdição extraterritorial. No caso em questão, o vínculo que permitiu o exercício da jurisdição extraterritorial foi o fato de as vítimas serem turcas e o fato de ter ocorrido em alto mar.

REFERÊNCIAS
GODOY, Arnaldo S. M. HISTÓRIA DO DIREITO INTERNACIONAL: O CASO LÓTUS (1927). Revista do Mestrado em Direito UCB

ACCIOLY, Hildebrando, NASCIMENTO E SILVA, G. E., e CASELLA, Paulo Borba,
Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 564.


 


Nenhum comentário:

Postar um comentário