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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Redes e Poder no Sistema Internacional: Redes da Guerra e suas consequências na escravização de populações africanas





A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2017 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.



Redes da Guerra e suas consequências na escravização de populações africanas
Como as redes de guerra entre tribos africanas pré-coloniais (pré seculo XV) foram um fator facilitador para a escravidão nas Américas

Camila Ersina *

O presente artigo busca analisar como as redes da guerra entre tribos africanas pré-coloniais e seus processos transformadores ao longo dos séculos, favoreceram os processos de dominação e degradação europeia das populações do continente durante o período de escravidão nas Américas.

Embora em períodos distintos, sabe-se que a escravidão ocorreu em todos os continentes do planeta, tornando-a uma instituição consolidada há muitos séculos. No entanto, autores divergem sobre algumas questões concernetes à ela, no que diz respeito, por exemplo, desde a forma com a qual os escravos eram obtidos, passando pelo sistema de escravidão e até a dinâmica com a qual as sociedades escravistas se estruturavam.

Desse modo, é importante trazer a definição do conceito de escravidão. De acordo com Paul Lovejoy (2002), é possível compreender a escravidão ocorrida na África como a forma de exploração na qual os escravos eram considerados propriedade, e eles, em geral, se tornavam estrangeiros alienados das questões jurídicas e sociais do território em que se encontram. A coerção era considerada, nos sistemas escravistas, um mecanismo legitimo e importante para a manutenção do regime, usado como punição dentro dessa instituição. Por fim, os escravos não possuíam direito à sua própria sexualidade e capacidade reprodutiva, uma vez que eram utilizados para a criação de mais mão-de-obra escrava.

No continente africano, a escravidão também ocorreu mesmo antes da chegada dos europeus. Porém, havia uma diferença na sociedade escravista africana com relação ao projeto de poder escravista colocado em prática pelos europeus, pois, de acordo com João José Reis (1987), a escravidão pode ser diferenciada entre sua versão doméstica e sua versão mercantil, o que seria um ponto-chave na questão. A escravidão praticada no continente africano antes do século XV era de caráter doméstico, na qual os escravos eram obtidos em sua grande maioria através de guerras justas entre as diversas tribos africanas, sendo a violência a base da produção de escravos cativos. 

Assim, a escravidão estava associada à agricultura, e nessas sociedades preferia-se escravas mulheres, pois eram elas as encarregadas de cuidar das lavouras. Devido à poligamia, ao tornarem-se escravas, elas também passavam a ser esposas do seu senhor, e quanto mais esposas um proprietário de escravos tivesse, mais mão de obra teria para cuidar das lavouras e das tarefas domésticas. As escravas também serviam para procriar, e seus filhos, ainda que escravos, seriam incorporados à sociedade e poderiam casar com mulheres livres. Quando seu senhor morresse, os filhos e suas e esposas tornavam-se livres. As guerras entre as tribos podiam ser econômicas e objetivavam angariar escravos. Os saqueamentos de tribos rivais e sequestros de seus indivíduos também eram mecanismos muito recorrentes dentro das guerras tribais africanas (REIS, 1987).

A partir da obtenção de escravos através do uso da violência oriunda das guerras, as sociedades africanas se fundaram, e se consolidaram. Algumas delas eram apresentavam tanta complexidade quanto a sociedade europeia, embora, com relação ao mundo europeu e ocidental, estivessem isoladas socialmente no interior do continente. Nessas sociedades, os escravos adultos do sexo masculino não eram muito valorizados, pois acreditava-se que esses poderiam representar uma maior resistência à sua escravização e por consequência causar rebeliões que causariam desalinho às sociedades africanas (REIS, 1987).

Dessa forma, após a chegada dos europeus no final do século XV, e o estabelecimento de suas feitorias na costa oeste da África, bem como nas ilhas africanas do atlântico, a elite africana encontrou uma saída para esse imbróglio. Eles, então, passaram a destinar esses escravos para a chamada escravidão mercantil em troca de produtos oriundos da Europa e da Ásia que os interessavam. Reis (1987) classifica a escravidão mercantil como institucionalizada. Para o autor, há uma necessidade de haver um órgão regulador e especializado que se orienta a partir de um heirarquização política e econômica, e que possui também aparato militar, mas sobretudo demanda (compradores), que seria o Estado mercantil europeu. 

Reis (1987) também pontua que a diferença entre as duas formas de escravidão reside justamente na relação entre senhor e escravo, diferenciando também pelo motivo pelo qual esses escravos foram produzidos, ou seja, a razão ou demanadas interna (dentro do continente africano) e externa (tráfico atlântico de escravos) às quais eles devem atender.

Para Lovejoy (2002), a escravidão sofreu um processo de transformação, já que ela passou a ser um “modo de produção”. Antes da chegada dos europeus, havia outras formas de subordinação, mas após a criação da rede de escravidão atlântica, essas outras formas de subordinação foram diminuindo à medida que a escravidão europeia aumentava consideravelmente. 

O tráfico de escravos foi responsável pela maior migração forçada de pessoas. Um fator que fez com que o fluxo mercantil de escravos se intenssificasse durante os séculos XVII e XVIII foi o fato de que os europeus passaram a fornecer armas produzidas através de técnicas ocidentais às elites africanas. Isso acabou por tornar as guerras regionais irregulares, ou seja, desproporcionais se comparadas ao padrão anterior. Dessa forma, consequentemente, o fluxo de escravos aumentou consideravelmente, já que o conluio entre a predação europeia e o interesse de algumas elites africanas acabou por se reunir durante este processo. 

Como a demanda do tráfico atlântico era maior por escravos adultos do sexo masculino, os interesses se conciliaram e isso foi um dos fatores não somente determinantes, mas também facilitadores para a escravidão nas Américas, pois esse excedente de mão de obra podia ser realocado para além-mar sem haver grandes conflitos entre as elites africanas e os europeus. Acreditava-se que os escravos homens aguentariam por um tempo mais prolongado que as mulheres as condições precárias da travessia, com provisões escassas e risco de contrair doenças nos navios. Esse fato deve ser visto com associação à demanda interna das sociedades africanas, como mencionado, que valorizava escravas mulheres.

Por fim, mas não menos importante, como fator facilitador para a escravidão na América, foram, com certeza, as redes de guerras estabelecidas antes da chegada dos europeus, estes que alicerçaram-se nas já existentes redes de transmigração de escravos, para elaborar um aparato institucional mais especializado, viabilizando, assim, um quadro mais oportuno para institucionalizar a escravidão no continente americano.

* Camila Ersina é acadêmica do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), e membro do Grupo de Pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

REIS, João José. Notas sobre a escravidão na África pré-colonial in: Estudos Afro-Asiáticos, 14 Ed. Setembro de 1987.

SILVA, Aberto da Costa. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/FBN, 2002.

SILVA, Aberto da Costa. Imagens Da África: Da antiguidade ao século XIX.

PATRICK, Manning. Escravidão E Mudança Social Na África.

TAVARES, Talita. Escravidão Interna Na África, Antes Do Tráfico Negreiro.

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