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terça-feira, 4 de outubro de 2016

Direito Internacional em Foco: A imunidade de jurisdição dos Estados e o Projeto de Lei norte-americano que responsabiliza a Arábia Saudita pelo 11/09.






 A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.


  A  imunidade de jurisdição dos Estados e o Projeto de Lei norte-americano que responsabiliza a Arábia Saudita pelo 11/09.

Bruna Kipper e Amanda Cavalli
 
  Um projeto de lei recém aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos permite que as vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001 possam processar a Arábia Saudita, responsabilizando-a pelos danos sofridos em razão do atentado. Segundo o texto aprovado, a Justiça americana poderia desconsiderar a imunidade de jurisdição em caso de atentados terroristas ocorridos dentro de suas próprias fronteiras (como foi o caso do 11 de setembro). 

Ocorre, porém, que o projeto vai totalmente contra as regras internacionais sobre imunidade de jurisdição, mesmo que no âmbito dos Direitos Humanos e do interesse das vítimas ele possa ser considerada legítimo. A medida foi inclusive vetada pelo presidente Barack Obama, justamente em razão de ser contrária ao Direito Internacional, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. 

Jurisdição é o poder que o Estado detém para aplicar o direito a um determinado caso, com o objetivo de solucionar conflitos de interesses e com isso resguardar a ordem jurídica e a autoridade da lei. Entretanto, no Direito Internacional, o Estado tem imunidade de jurisdição, que é um princípio que exclui a possibilidade deste ser submetido à jurisdição interna de outro, a menos que  expresse seu consentimento para tanto.

A imunidade soberana possui raízes históricas ligadas aos templos de idolatria ao divino, que ali não admitiam a jurisdição local regida pelo poder mundano, mas somente de seus sacerdotes. O conceito moderno desta prática surgiu com os Estados modernos, quando em 1648 os primeiros tratados foram assinados dando início à Paz de Vestfália, que assegurou a soberania dos países e o respeito às fronteiras e a inviolabilidade do rei se alterou para a do  Estado. Neste período, as imunidades tiveram uma primeira formulação através do costume internacional, que posteriormente consagrou a regra “par in parem non habet judicium”. Essa regra foi desenvolvida em função do princípio da igualdade soberana dos povos, que parte da ideia de que nenhuma nação deve se submeter às vontades de outra.

 Foi no caso Ferrini que suscitou-se pela primeira vez a  possibilidade de haver uma exceção na imunidade jurídica dos Estados. O processo começou quando Luigi Ferreni, italiano, pediu em 1998, uma indenização à Alemanha pelos danos materiais e morais que sofreu durante o Holocausto. O pedido, que inicialmente foi negado pela Justiça Italiana ante a impossibilidade de julgar um país estrangeiro, em 2004 teve uma decisão favorável, quando a  Corte Suprema de Cassação da Itália decidiu  que a Justiça Italiana gozava de competência jurisdicional para julgar o pedido de Ferrini contra a Alemanha. Com isso, vários outros pedidos semelhantes foram parar no Judiciário italiano, até que a Alemanha levou o caso para Haia. A Corte Internacional de Justiça então decidiu que a Itália violou as regras do Direito Internacional ao não respeitar a imunidade  Alemã, e que nem a gravidade de crimes contra os Direitos Humanos justificaria a exceção à regra do par in parem. A Corte de Haia anunciou em 2012 a reafirmação da imunidade de jurisdição das nações.

É de se destacar, porém, que a doutrina evoluiu ao tratar da imunidade de jurisdição, passando a distinguir os atos de gestão dos atos de império. Nos primeiros, as ações do Estado são equiparadas a de particulares (como em uma relação de emprego por exemplo); já nos Atos de Império o Estado age segundo seus direitos de soberano. Por isto, a imunidade de jurisdição pode ser relativizada para os atos de gestão, mas tal relativização não alcançará os atos de império – sendo que a única forma de um Estado ser processado por outro em decorrência de um ato de império é se ele mesmo renunciar a sua imunidade de jurisdição.

 A razão para a medida norte americana de processar a Arábia Saudita é que quinze dos dezenove envolvidos do ataque de 11 de setembro eram sauditas e em fevereiro do ano passado, Zacarias Mussaui disse aos advogados que a família saudita tinha envolvimento com a Al-Qaeda, tendo feito doações de milhões de dólares nos anos 90.   No entanto, a aprovação do projeto de lei -  Justiça Contra Patrocinadores do Terrorismo” (Justice Against Sponsors of Terrorism Act) -  poderá ser um tiro no próprio pé dos Estados Unidos: uma vez que os EUA aprovem essa medida, outros países irão aprovar também que seus cidadãos processem os EUA, já sendo possível citarmos as várias famílias das vítimas das invasões no Iraque e no Afeganistão, ou as milhares de pessoas que foram torturadas em prisões secretas norte americanas. A Arábia Saudita é um parceiro que mantém relações delicadas com os EUA, porém essenciais, e já declarou que irá retaliar financeiramente o país caso seja aprovado o projeto; outra possibilidade de resposta à lei é que funcionários norte-americanos percam sua imunidade no estrangeiro.

Trata-se, por fim, de uma flagrante violação do Direito Internacional, podendo os Estados Unidos serem responsabilizados internacionalmente.

Referências:
-GARCIA, Gustavo. Imunidade de jurisdição decorre de norma costumeira. 2014. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2014-jun-14/gustavo-garcia-imunidade-jurisdicao-decorre-norma-costumeira . Acesso em 02/08/2016
-Autor Desconhecido. Imunidades dos Estados e das Organizações Internacionais. 2014. Disponível em: http://resumosdireito.blogspot.com.br/2014/03/imunidades-dos-estados-e-das.html. Acesso em 02/08/2016

-MOSER, Claudinei. Imunidade de Jurisdição do Estado estrangeiro: a questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista. 2008. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2678 . Acesso em 02/08/2016

-BASSETS, Marc. EUA aprovam lei que permite processar Arábia Saudita pelo 11 de Setembro. 2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/09/internacional/1473439478_126068.html. Acesso em 02/08/2016
-ROMANO, Luiz Paulo. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro: absoluta ou relativa?. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1638/a-imunidade-de-jurisdicao-do-estado-estrangeiro-absoluta-ou-relativa. Acesso em 02/08/2016

-BOULOS, Christianne. Decisão do STF: Organismos internacionais e imunidade à jurisdição trabalhista. 2013. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/63075/decisao+do+stf+organismos+internacionais+e+imunidade+a+jurisdicao+trabalhi. Acesso 02/08/2016

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