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sexta-feira, 3 de junho de 2016

Direito Internacional em Foco: A Prisão do Depositário Infiel no Direito Brasileiro e a posição hierárquica dos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos


A seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3° período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não refletem o posicionamento da instituição.




A Prisão do Depositário Infiel no Direito Brasileiro e a posição hierárquica dos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos

Thyffanny Paiva, Stephanie Oliveira, Gabriel Fortunato Piassa, Eron Ferreira, André Luiz Coentro Wohlke, Maria Júlia Torralba.


 

“Os Direitos Humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Com a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, os Direitos Humanos alcançaram projeção mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, sentiu-se a necessidade de criar um sistema que impedisse que os acontecimentos ocorridos durante esse período de terror voltassem a se repetir. Para tanto, promoveu-se a proteção internacional dos indivíduos para que estes não tivessem seus direitos violados, criando uma barreira saudável entre o Estado e seus nacionais, haja vista que as atrocidades ocorridas na guerra foram patrocinadas pelos Estados. Percebeu-se, dessa forma, a necessidade de limitação da soberania dos Estados em nome da proteção dos seres humanos. Ainda que sem qualquer sistematização,  a Carta da ONU menciona como um de seus objetivos a promoção do respeito aos direitos humanos. 

Atualmente existem diversos órgãos e tratados de Direitos Humanos em vigor internacionalmente. Sua proteção costuma ser dividida em dois âmbitos: o sistema global, sob tutela da ONU, e os sistemas regionais, de tratados e órgãos específicos firmados regionalmente pelo mundo. Neste contexto, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica,  de 1969, consolida o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sendo o documento mais importante do continente neste tema.

Os Estados signatários desse tratado são também membros da OEA (Organização dos Estados da América), sob a qual reside a tutela do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Não obstante, nem todos os membros da OEA fazem parte do Sistema, merecendo destaque a não participação dos Estados Unidos.

Em 1948, a Assembleia Geral da OEA adotou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Embora careça de obrigação jurídica, deixou explícito o reconhecimento de direitos e o interesse dos Estados em sua proteção. Cerca de seis meses depois, 48 nações adotaram, por meio da Assembleia Geral da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual foi responsável pela criação do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos. É interessante notar, dessa forma, que os sistemas global e regional foram construídos concomitantemente; e que, neste último, o Continente Americano foi precursor.

Em ambos os sistemas, ainda, a proteção de direitos divide-se em normas de alcance geral e de alcance especial. No Sistema ONU, as normas de alcance geral estão presentes na referida Declaração Universal e nos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Já as normas de alcance especial englobam normas de proteção de direitos de grupos particulares,  tidos como vulneráveis.  Neste amplo quadro é que se inscreve o Direito Internacional dos Direitos Humanos, incluindo todas as suas variações geográficas e de conteúdo.

Os Sistemas Regionais, a exemplo do Interamericano, possuem aplicabilidade muito mais forte que o Sistema Global. Embora, diferentemente das declarações, os Pactos Internacionais de 1966, por serem tratados, tenham força de obrigação jurídica, sua observação, ainda que conte com Comitês de Monitoramento específicos da ONU, é bastante problemática. No Sistema Interamericano, ao contrário, há uma Comissão e uma Corte capazes de condenar os Estados a mudarem suas práticas ou alterarem suas legislações, quando incompatíveis com a normativa dos direitos humanos.

O Brasil aderiu à Convenção Americana somente em 1992, pouco  depois da promulgação da Constituição de 1988, juntamente com outros tratados de direitos humanos. Uma possível razão por essa demora é a inconsistência dos valores desses documentos com as práticas da ditadura militar, que vigorou durante a época de desenvolvimento dos sistemas internacionais de proteção.

Interessante exemplo da relativa efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos é o caso brasileiro sobre a legalidade da prisão de depositário infiel, em que a normativa do Sistema Interamericano trouxe a nosso ordenamento jurídico uma nova abordagem.

Nossa Constituição Federal prevê duas hipóteses de prisão por dívida, encontradas no artigo 5º, inc. LXVII:  “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Já o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 7º, parágrafo 7, prevê: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
          
  Dessa forma, segundo a Convenção, há apenas uma exceção para a proibição de prisão civil, a de obrigação alimentar, não sendo permitida a prisão do depositário infiel, como prevê a CF. 

       De acordo com o Código Civil, art. 627: “Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel para guardar, até que o depositante o reclame”.

A partir disso, o depositário infiel é o indivíduo que descumpriu um acordo, feito com o depositante, causando danos materiais  desse bem. O Direito brasileiro, assim,  entendiapermissível sua prisão, constituindo exceção à proibição geral de prisão por dívida. Neste contexto, então, surgiu o debate quanto à incompatibilidade do previsto por nosso ordenamento e pelo previsto na Convenção, traduzido pelo debate entre a natureza jurídica do tratado em nosso ordenamento, isto é, se a norma brasileira deveria ser alterada em razão de um tratado internacional.

Nosso ordenamento jurídico segue a lógica dualista, segundo a qual o direito nacional e o internacional são ramos distintos, e a norma proveniente de direito internacional só passa a ser aplicável internamente após a internalização do tratado que a prevê. 

Assim, a incorporação dos tratados ao direito interno adota o modelo tradicional segundo o qual a introdução do tratado está subordinada ao cumprimento pela autoridade estatal de um ato jurídico especial. O processo começa com a assinatura do tratado, tradicionalmente feita pelo Chefe de Estado. Em seguida, o Ministro das Relações Exteriores encaminha uma Carta de Exposição de Motivos à Câmara dos Deputados, que, concordando com o tratado, o  envia ao Senado Federal. Se aprovado, o Congresso emite um Decreto Legislativo, que permite ao Chefe do Executivo a ratificação. Por fim, este ratifica o tratado e então o promulga por meio de decreto executivo, quando é finalmente internalizado.

Nossa Constituição, porém, não estabelece qual a natureza jurídica do tratado após sua internalização e por muito tempo, o entendimento foi o de que todos os tratados tinham validade de lei ordinária – podendo inclusive serem revogados por lei posterior. No entanto, a doutrina discutia a possibilidade dos Tratados de Direitos Humanos, em razão de sua natureza e conteúdo, integrarem o bloco de constitucionalidade brasileiro. A Emenda Constitucional n°45/2004 inovou ao trazer o parágrafo 3° ao artigo 5° do texto constitucional, segundo o qual “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

Dessa forma, os tratados de direitos humanos que seguirem tal rito passam a ter força equivalente à de norma constitucional, enquanto segue o entendimento de que os demais tratados, de matéria geral, possuem força de lei ordinária. Restou, não obstante, a dúvida quanto à força dos tratados de direitos humanos aprovados por maioria simples ou aprovados anteriormente à data da emenda.

Neste último ponto, os entendimentos da doutrina foram diversos. Para Flávia Piovesan, por exemplo, todos os direitos advindos de tratados internacionais têm força de norma constitucional, posto que o parágrafo 2º do artigo 5º prevê que a enumeração constitucional não exclui direitos provenientes de regimes internacionais adotados pelo Brasil. O STF, porém, acabou por resolver a questão através do Recurso Extraordinário 466.343, em que atribuiu ao Pacto o status de supra-legalidade (acima da lei, abaixo da Constituição), entendimento que passou a ser aplicado aos demais tratados de direitos humanos não aprovados pelo rito previsto no parágrafo 3º.

Segundo esse entendimento, portanto, a previsão constitucional de prisão de depositário infiel se encontra acima da previsão proibitiva da Convenção. Não obstante, a normativa nacional que regula tal prisão é infraconstitucional e, portanto, fica paralisada por força dos tratados internacionais; fica claro, ademais, que, por se tratar de matéria de direitos humanos, o debate é bastante extenso e constante, sendo a doutrina bastante dividida, o que acaba por impactar nas práticas constitucionais. Foi o que ocorreu nessa questão.

Em 2009, o Pleno do STF aprovou por unanimidade a Súmula Vinculante No. 25, segundo a qual “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”, aderindo à posição do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Sobre a divergência entre a natureza dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos é, ainda, de se destacar o posicionamento adotado pelo Ministro Celso de Melo quanto à temática:

"O fato, Senhores Ministros, é que, independentemente da orientação que se venha a adotar (supralegalidade ou natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos), a conclusão será, sempre, uma só: a de que não mais subsiste, em nosso sistema de direito positivo interno, o instrumento da prisão civil nas hipóteses de infidelidade depositária, cuide-se de depósito voluntário (convencional) ou trate-se, como na espécie, de depósito judicial, que é modalidade de depósito necessário." (HC 90983, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 23.9.2008, DJe de 13.5.2013)

De fato, embora não tenha resolvido definitivamente a controvérsia doutrinária, é fato que, na edição da Súmula Vinculante, a fundamentação utilizada pelo STF menciona expressamente na adesão do Brasil à Convenção Americana e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ainda que anteriormente à EC 45/2004.



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