A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
A
Prisão do Depositário Infiel no Direito Brasileiro e a posição hierárquica dos
Tratados Internacionais dos Direitos Humanos
Thyffanny
Paiva, Stephanie Oliveira, Gabriel Fortunato Piassa, Eron Ferreira, André Luiz
Coentro Wohlke, Maria Júlia Torralba.
“Os
Direitos Humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou
qualquer outra condição. ” Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Com a
criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, os Direitos Humanos
alcançaram projeção mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, sentiu-se a
necessidade de criar um sistema que impedisse que os acontecimentos ocorridos
durante esse período de terror voltassem a se repetir. Para tanto, promoveu-se a
proteção internacional dos indivíduos para que estes não tivessem seus direitos
violados, criando uma barreira saudável entre o Estado e seus nacionais, haja
vista que as atrocidades ocorridas na guerra foram patrocinadas pelos Estados.
Percebeu-se, dessa forma, a necessidade de limitação da soberania dos Estados
em nome da proteção dos seres humanos. Ainda que sem qualquer sistematização, a Carta da ONU menciona como um de seus
objetivos a promoção do respeito aos direitos humanos.
Atualmente
existem diversos órgãos e tratados de Direitos Humanos em vigor internacionalmente.
Sua proteção costuma ser dividida em dois âmbitos: o sistema global, sob tutela
da ONU, e os sistemas regionais, de tratados e órgãos específicos firmados
regionalmente pelo mundo. Neste contexto, a Convenção Americana de Direitos
Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, consolida o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, sendo o documento mais importante do continente neste tema.
Os
Estados signatários desse tratado são também membros da OEA (Organização dos
Estados da América), sob a qual reside a tutela do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos. Não obstante, nem todos os membros da OEA fazem parte do
Sistema, merecendo destaque a não participação dos Estados Unidos.
Em 1948,
a Assembleia Geral da OEA adotou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem. Embora careça de obrigação jurídica, deixou explícito o
reconhecimento de direitos e o interesse dos Estados em sua proteção. Cerca de
seis meses depois, 48 nações adotaram, por meio da Assembleia Geral da ONU, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual foi responsável pela criação
do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos. É interessante notar, dessa
forma, que os sistemas global e regional foram construídos concomitantemente; e
que, neste último, o Continente Americano foi precursor.
Em ambos os sistemas, ainda, a proteção de
direitos divide-se em normas de alcance geral e de alcance especial. No Sistema
ONU, as normas de alcance geral estão presentes na referida Declaração
Universal e nos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Já as normas de
alcance especial englobam normas de proteção de direitos de grupos
particulares, tidos como vulneráveis. Neste amplo quadro é que se inscreve o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, incluindo todas as suas variações
geográficas e de conteúdo.
Os
Sistemas Regionais, a exemplo do Interamericano, possuem aplicabilidade muito
mais forte que o Sistema Global. Embora, diferentemente das declarações, os
Pactos Internacionais de 1966, por serem tratados, tenham força de obrigação
jurídica, sua observação, ainda que conte com Comitês de Monitoramento
específicos da ONU, é bastante problemática. No Sistema Interamericano, ao
contrário, há uma Comissão e uma Corte capazes de condenar os Estados a mudarem
suas práticas ou alterarem suas legislações, quando incompatíveis com a
normativa dos direitos humanos.
O
Brasil aderiu à Convenção Americana somente em 1992, pouco depois da promulgação da Constituição de 1988,
juntamente com outros tratados de direitos humanos. Uma possível razão por essa
demora é a inconsistência dos valores desses documentos com as práticas da
ditadura militar, que vigorou durante a época de desenvolvimento dos sistemas
internacionais de proteção.
Interessante
exemplo da relativa efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos é
o caso brasileiro sobre a legalidade da prisão de depositário infiel, em que a
normativa do Sistema Interamericano trouxe a nosso ordenamento jurídico uma
nova abordagem.
Nossa
Constituição Federal prevê duas hipóteses de prisão por dívida, encontradas no
artigo 5º, inc. LXVII: “Não
haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável do inadimplemento
voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Já
o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 7º, parágrafo 7, prevê: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este
princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos
em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Dessa forma, segundo a Convenção, há apenas uma exceção para
a proibição de prisão civil, a de obrigação alimentar, não sendo permitida a
prisão do depositário infiel, como prevê a CF.
De
acordo com o Código Civil, art. 627: “Pelo contrato de depósito recebe o
depositário um objeto móvel para guardar, até que o depositante o reclame”.
A
partir disso, o depositário infiel é o indivíduo que descumpriu um acordo,
feito com o depositante, causando danos materiais desse bem. O Direito brasileiro, assim, entendiapermissível sua prisão, constituindo
exceção à proibição geral de prisão por dívida. Neste contexto, então, surgiu o
debate quanto à incompatibilidade do previsto por nosso ordenamento e pelo
previsto na Convenção, traduzido pelo debate entre a natureza jurídica do
tratado em nosso ordenamento, isto é, se a norma brasileira deveria ser
alterada em razão de um tratado internacional.
Nosso
ordenamento jurídico segue a lógica dualista, segundo a qual o direito nacional
e o internacional são ramos distintos, e a norma proveniente de direito
internacional só passa a ser aplicável internamente após a internalização do
tratado que a prevê.
Assim,
a incorporação dos tratados ao direito interno adota o modelo tradicional
segundo o qual a introdução do tratado está subordinada ao cumprimento pela
autoridade estatal de um ato jurídico especial. O processo começa com a
assinatura do tratado, tradicionalmente feita pelo Chefe de Estado. Em seguida,
o Ministro das Relações Exteriores encaminha uma Carta de Exposição de Motivos à
Câmara dos Deputados, que, concordando com o tratado, o envia ao Senado Federal. Se aprovado, o
Congresso emite um Decreto Legislativo, que permite ao Chefe do Executivo a ratificação.
Por fim, este ratifica o tratado e então o promulga por meio de decreto executivo,
quando é finalmente internalizado.
Nossa
Constituição, porém, não estabelece qual a natureza jurídica do tratado após
sua internalização e por muito tempo, o entendimento foi o de que todos os
tratados tinham validade de lei ordinária – podendo inclusive serem revogados
por lei posterior. No entanto, a doutrina discutia a possibilidade dos Tratados
de Direitos Humanos, em razão de sua natureza e conteúdo, integrarem o bloco de
constitucionalidade brasileiro. A Emenda Constitucional n°45/2004 inovou ao
trazer o parágrafo 3° ao artigo 5° do texto constitucional, segundo o qual “Os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.”
Dessa
forma, os tratados de direitos humanos que seguirem tal rito passam a ter força
equivalente à de norma constitucional, enquanto segue o entendimento de que os
demais tratados, de matéria geral, possuem força de lei ordinária. Restou, não
obstante, a dúvida quanto à força dos tratados de direitos humanos aprovados
por maioria simples ou aprovados anteriormente à data da emenda.
Neste
último ponto, os entendimentos da doutrina foram diversos. Para Flávia
Piovesan, por exemplo, todos os direitos advindos de tratados internacionais
têm força de norma constitucional, posto que o parágrafo 2º do artigo 5º prevê que
a enumeração constitucional não exclui direitos provenientes de regimes
internacionais adotados pelo Brasil. O STF, porém, acabou por resolver a
questão através do Recurso Extraordinário 466.343, em que atribuiu ao Pacto o
status de supra-legalidade (acima da lei, abaixo da Constituição), entendimento
que passou a ser aplicado aos demais tratados de direitos humanos não aprovados
pelo rito previsto no parágrafo 3º.
Segundo
esse entendimento, portanto, a previsão constitucional de prisão de depositário
infiel se encontra acima da previsão proibitiva da Convenção. Não obstante, a
normativa nacional que regula tal prisão é infraconstitucional e, portanto,
fica paralisada por força dos tratados internacionais; fica claro, ademais,
que, por se tratar de matéria de direitos humanos, o debate é bastante extenso
e constante, sendo a doutrina bastante dividida, o que acaba por impactar nas
práticas constitucionais. Foi o que ocorreu nessa questão.
Em
2009, o Pleno do STF aprovou por unanimidade a Súmula Vinculante No. 25,
segundo a qual “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que
seja a modalidade do depósito”, aderindo à posição do Direito Internacional dos
Direitos Humanos.
Sobre
a divergência entre a natureza dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
é, ainda, de se destacar o posicionamento adotado pelo Ministro Celso de Melo
quanto à temática:
"O fato, Senhores Ministros, é que,
independentemente da orientação que se venha a adotar (supralegalidade ou
natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos), a
conclusão será, sempre, uma só: a de que não mais subsiste, em nosso sistema de
direito positivo interno, o instrumento da prisão civil nas hipóteses de
infidelidade depositária, cuide-se de depósito voluntário (convencional) ou
trate-se, como na espécie, de depósito judicial, que é modalidade de depósito
necessário." (HC 90983, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma,
julgamento em 23.9.2008, DJe
de 13.5.2013)
De
fato, embora não tenha resolvido definitivamente a controvérsia doutrinária, é
fato que, na edição da Súmula Vinculante, a fundamentação utilizada pelo STF
menciona expressamente na adesão do Brasil à Convenção Americana e ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ainda que anteriormente à EC
45/2004.
Referências:
Nenhum comentário:
Postar um comentário