A
seção "Direito Internacional em Foco" é produzida por alunos do 3°
período do Curso de Relações Internacionais da UNICURITIBA, com a
orientação da professora de Direito Internacional Público, Msc. Michele
Hastreiter, e a supervisão do monitor da disciplina, Gabriel Thomas
Dotta. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores e não
refletem o posicionamento da instituição.
A
Responsabilidade Individual No Tribunal Penal Internacional
Ana
Carolina Gral, Leonardo Albanez, Mariana Carvalho e Otávio Vidal
A criação do Tribunal Penal Internacional aconteceu como resposta
às violações mais graves dos direitos humanos que ameaçavam a manutenção da
paz, segurança e bem-estar dos povos. Não obstante, a doutrina estabelece uma
divisão rígida entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito
Internacional Penal, tanto com relação a seu objeto quanto a seu modus operandi.
Ao contrário do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, que prevê e regula direitos cujos beneficiários são indivíduos e vê
nos Estados o meio de sua efetivação, tornando-se estes últimos responsáveis
internacionalmente em caso de não cumprimento, o Direito Internacional Penal
tem como objeto principal a responsabilização de indivíduos pela comissão de determinadas
condutas, criminalmente. O princípio que sustenta este ramo é o de que certos
crimes são tão graves que são de interesse e alcance de toda a humanidade,
legitimando-se a existência de uma instância internacional na matéria.
Dessa forma, criou-se o Estatuto de Roma, tratado assinado
no dia 17 de julho de 1998, que deu origem ao Tribunal Penal Internacional, o primeiro
de caráter permanente, também conhecido como Corte Penal Internacional. O
Tribunal, é importante notar, é fruto de um processo histórico que se inicia
após a Segunda Guerra Mundial, tendo como antecedentes diretos os Tribunais
Internacionais Militares de Nuremberg e Tóquio e os Tribunais Internacionais
Penais para Ruanda e Iugoslávia, todos de caráter ad hoc. O TPI não é órgão da ONU, podendo agir com absoluta
independência, mas prevê-se a cooperação e harmonia entre as duas organizações.
Sua sede é instalada em Haia, na Holanda, e o Estatuto
conta hoje com 124 signatários, que representam os Estados-membros do Tribunal.
Dos Estados que não participam, destacam-se os Estados Unidos, a Rússia e a
China. Apesar de o Estatuto ter sido assinado pelo primeiro Estado em 1998, só
entrou em vigor em julho de 2002, após o mínimo necessário de ratificações,
data em que o Tribunal entrou em operação, e por isso só pode julgar crimes
cometidos a partir desta data.
O Estatuto tem o objetivo de tipificar os crimes
considerados de interesse internacional, chamados na doutrina de core crimes, e impor os parâmetros de penalização internacional dos indivíduos
que são responsáveis pelos mesmos; embora não estabeleça objetivamente as
penas, que são definidas pelos juízes caso a caso, estabelece seus limites. O
Estatuto traz em seu artigo 5º: "a competência do Tribunal
restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional
no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência
para julgar os seguintes crimes: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a
humanidade; c) Crimes de guerra; d) O crime de agressão". O crime de
agressão, no entanto, só foi emendado em 2010 por razão da Revisão de Kampala,
e a jurisdição material do Tribunal para o mesmo só entra em vigor em 2017.
Como qualquer instância internacional, o TPI não pode
agir de forma isolada, devendo trabalhar complementarmente aos Estados
signatários e deles dependendo no processo de prisão e entrega de indivíduos; e
não pode intervir na soberania dos Tribunais nacionais. O Tribunal também deve
ser considerado como última instância, onde irá intervir apenas se o Estado Nacional
não se manifestar sobre determinado processo judicial, ou for considerado
incapaz, por quaisquer motivos, de cumprir com suas obrigações.
Neste sentido, porém, é importante notar que a intervenção
do Tribunal não depende de consentimento dos Estados caso a caso: desde o
momento em que ratifica o Estatuto, qualquer Estado está sujeito a ingerências
não programadas do Tribunal, caso não tome as medidas necessárias para
investigar e julgar aqueles responsáveis pela comissão dos crimes definidos no
Art. 5º do Estatuto. Existe, ademais, a possibilidade de intervenção do
Tribunal frente a Estados não signatários, por determinação do Conselho de
Segurança da ONU.
A comissão de crimes de alcance
internacional geralmente implica na cooperação de um grande número de pessoas, por
sua própria gravidade; no entanto, mesmo que a natureza do crime seja
internacional, não podemos ignorar a responsabilidade individual do sujeito,
sendo esta a razão de ser do Tribunal.
De acordo com o Doutor em Direito
Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, “uma das principais qualidades do
Estatuto reside na afirmação do princípio da responsabilidade penal de
indivíduos pela prática de delitos contra o Direito Internacional”. A
partir desse pensamento, passou-se a considerar o indivíduo como sujeito de
direitos e deveres do cenário internacional também, sendo passível de
responsabilização internacional por seus atos. O autor diz que o pensamento
surgiu com base nas explicações de Hugo Grotius, que discordava do fato de que
as relações internacionais só prestavam atenção nas relações entre
Estados.
Dessa forma, agora a pessoa concreta
passa a ser reconhecida expressamente como sujeito no Direito Internacional, a
despeito do contínuo debate acerca do tema na doutrina. Não obstante todo o
afirmado, reitera-se que a obrigação primária na investigação e julgamento de
tais indivíduos reside nos Estados nacionais, não cabendo intervenção do
Tribunal em situações de normalidade. Assim, as conquistas não isentam a
responsabilidade do Estado do indivíduo de cumprir com suas obrigações.
Em que pesem os indivíduos, o
Estatuto ainda é inovador ao trazer diversas modalidades de perpetração de
crimes, de forma mais elaborada que o trazem os códigos penais de diversos
Estados. O julgamento dos indivíduos leva em conta a consciência e a vontade
para pressupor a existência da responsabilidade penal do agente. O crime é
composto, dessa forma, tanto por seu aspecto material (actus reus) quanto pelo aspecto psicológico que o acompanha (mens rea). Mais importante: será julgado
independentemente de o crime ter sido cometido individualmente ou em conjunto
com demais pessoas.
O Art. 25 do Estatuto estabelece as
diretrizes do Tribunal com relação à responsabilidade individual. Segundo seu
parágrafo terceiro, uma pessoa pode responder criminalmente e ser passível de punição
se: cometer crime, seja individualmente, seja conjuntamente a outro, ou seja
através de alguém, ainda que o último não seja passível de punição; ordenar,
solicitar ou induzir a prática de um crime que ocorra ou seja atentado; com o
objetivo de facilitar a comissão de um crime, ajude ou colabore para o
acontecimento ou tentativa do delito; contribua para a comissão ou tentativa de
crime por um grupo de propósito comum; em se tratando do crime de genocídio,
incite publicamente sua comissão; e tente cometer qualquer crime de jurisdição
do Tribunal, ainda que este não chegue a produzir efeitos, caso tenha tomado
passos substanciais e sua não execução ocorra devido a circunstâncias
independentes ao indivíduo.
Haja vista todas estas provisões, resulta
evidente a interessante abrangência do Estatuto. Um indivíduo é passível de
punição individual pela participação na comissão de crime nas mais diversas
formas, inclusive pela mera facilitação na comissão de crime por outro indivíduo
ou grupo, ainda que este não seja responsabilizado; só deixa de ser passível de
responsabilização na eventualidade de abandonar ou de alguma forma impedir a
consumação do crime, renunciando o propósito do delito, em caso de comissão
individual.
Digno de nota também é o fato de que
o Estatuto não estabelece uma hierarquia de níveis em matéria de
responsabilidade, sendo todas as modalidades de participação passíveis de
julgamento em mesmo nível, embora as Regras de Procedimento do Tribunal
estabeleçam que os juízes possam levar em consideração, na atribuição da
sentença, o nível de participação.
A título de exemplo, em 2011, tramitaram
processos pelo TPI que ficaram mundialmente conhecidos: a situação da Líbia,
envolvendo o ditador Muammar Gaddafi, seu
filho Seif al-Islam, e seu chefe dos serviços de inteligência, Abdallah Al
Senusi, acusados de cometer crimes contra a humanidade. O promotor do caso foi o
argentino Luis Moreno-Ocampo, responsável pela investigação que incluiu
diversos documentos, vídeos e fotografias, além da participação de mais de 50
pessoas como testemunhas.
A promotoria afirmou que Gaddafi e
seu filho Saif al-Islam ordenavam pessoalmente todos os ataques que foram
cometidos contra os civis, e que Senussi era o executor das ordens. Entre os
crimes cometidos estão o ataque a civis em vias públicas, disparos contra
manifestantes com armas de fogo, uso de armamento pesado em funerais e uso de
franco-atiradores nos protestos. O fato de o ditador e seu filho nunca terem
executado objetivamente os atos, fica claro, não os isenta de qualquer forma de
serem passíveis de punição. Por isso, mandados de prisão foram expedidos contra
eles.
O ditador acabou morrendo no combate
conhecido como Batalha de Sirte, em 2011, sendo seu mandado de prisão anulado
em decorrência do fato. O mandato do TPI contra seu filho também nunca chegou a
ser cumprido; finda a guerra de 2011 e a morte de Gaddafi, o Judiciário da Líbia
tomou controle das investigações para si, não sendo mais necessária a atuação
do Tribunal.
Saif
al-Islam, além de oito pessoas de altos cargos, liderados por ele, foram
investigados e condenados dentro do país. O julgamento teve autorização para
acontecer na Líbia, mas teve de ocorrer em conformidade às normas do TPI, que
abandonou o caso. Todos os acusados foram condenados pelo Tribunal de Trípoli e
sentenciados à morte, o que não teria
acontecido se o julgamento efetivo tivesse acontecido em Haia, pois a pena mais
severa que o TPI tem permissão de aplicar é a de prisão perpétua.
REFERÊNCIAS:
WERLE, G.; BUNG, J. Summary (Indiv. Crim. Responsibility) – International Criminal Justice
Sommersemester 2010.
AMBOS, Kai. Individual
Criminal Responsibility Under Art. 25 of the Rome Statute of the International
Criminal Court.
http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2011/05/16/tpi-emite-mandado-de-prisao-contra-gaddafi-por-crimes-contra-a-humanidade.htm
REFERÊNCIAS DA IMAGEM:
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