Na Palestina, a Faixa de Gaza compreende um território de 40
quilômetros de comprimento por no máximo 12 de largura. Ali, encostados no
Egito ao sul e espremidos por Israel por todos os lados, sobrevivem quase 2
milhões de pessoas num dos espaços mais densamente povoados do planeta.
Além disto, a população tem crescido, em média, 3,2% ao ano. Sem espaço
para pecuária, Gaza também não tem infraestrutura sequer para uma
industrialização básica.
Toda esta miséria é cercada por aço. Em 2010, o então premiê
israelense Benjamin Netanyahu anunciou a construção de mais de 100
quilômetros de muralhas para bloquear o território palestino. Este cerco por
água, terra e ar era justificado pelo caráter “judaico e democrático” do estado
de Israel, declarou Netanyahu. Não bastasse a asfixia humanitária e
econômica, Gaza sofreu bombardeios israelenses em 2008, 2012, 2014 e
2021. Em 2012, inclusive, uma escola das Nações Unidas na Palestina foi
posta em ruínas.
Enquanto em Gaza não há como sequer realizar uma transfusão de
sangue em um ferido, Cuba goza de um dos melhores sistemas públicos de
saúde do mundo. Isto que, há quase 60 anos, a ilha caribenha enfrenta um
bloqueio econômico dos Estados Unidos similar – embora mais brando – ao
que os palestinos encaram de Israel.
Em 2021, pela 29o vez, a maioria dos países da ONU foram contra o
bloqueio americano a Cuba. Foram 184 votos favoráveis a resolução que
condena o embargo e apenas dois contrários: o próprio embargante e,
curiosamente, Israel.
Cuba está estagnada econômica, cultural, tecnológica e intelectualmente
nos anos 1960. É raro ver carros na rua que ainda possuem linha de fabricação
e comum observar meninos chutando bola com camisas do Botafogo de
Garrincha no Malecon Habanero. O embargo, indiretamente, fez dos
mecânicos cubanos os mais criativos do mundo, já que não há sequer uma
autopeça made in USA na ilha. Se é difícil para o mundo automotivo, que dirá
para as demandas de modernização e acesso à internet, causa dos mais
recentes protestos contra o governo de Miguel Díaz-Canel que renderam mais
de 400 prisões de manifestantes.
Engessada, a economia do país é absolutamente dependente do
turismo que, pela pandemia do coronavírus, praticamente inexistiu neste um
ano e meio. Para piorar a agitação social, o país enfrentou seguidos blecautes
em decorrência de acidentes em estações elétricas, que seriam facilmente
resolvidos não fosse a dificuldade que o embargo estadunidense impõe na
importação de todo e qualquer material.
São menos de 90 quilômetros que separam as ilhas se considerarmos o
ponto mais oriental de Cuba até o extremo ocidente do Haiti. Enquanto Havana
lidou relativamente bem com a pandemia e já vacinou mais de 30% da
população contra a Covid-19, Porto Príncipe não tem sequer condições de
armazenamento resfriado de doses de imunizante, o que torna a vacinação um
programa sanitário natimorto.
O terremoto do início de 2010 chacoalhou ainda mais a miséria no país
mais pobre do continente. Foram mais de 300 mil mortos, 300 mil feridos e 2
milhões de flagelados somente no cismo. Em decorrência dele e da Missão de
Paz da ONU liderada pelas Forças Armadas do Brasil, vieram uma epidemia de
cólera que chegou a hospitalizar mais de 20 mil pessoas e uma onda de
delinquência inédita.
Mais de década depois da catástrofe, o Haiti se encontra quiçá pior que
há dez anos. O país, desde e por causa da sua fundação na virada do século
XVIII para o XIX, não experimentou estabilidade minimamente duradoura. Entre
o fim dos anos 1800 e começo do século XX, dos 20 governantes que se
sucederam, 16 foram mortos ou depostos. É como, se até hoje, o centro
euro-americano não aceitasse que a revolta de escravos descendentes de
africanos tenha reivindicado a liberdade, igualdade e fraternidade de Bonaparte para a colônia canavieira tropical de Saint-Domingue, fazendo do Haiti a
primeira nação independente da América Latina em 1804, não reconhecida
pelos Estados Unidos.
Mesmo independente da França, o país recém-nascido teve de
compensar financeiramente os donos de escravo da metrópole, o que
hipotecou o Haiti aos bancos franceses por todo os anos 1800. Com o declínio
dos impérios francês, britânico e espanhol e ascensão dos EUA no século XX,
o presidente democrata Woodrow Wilson invadiu a ilha e a tornou um
protetorado americano em 1915. Por 18 anos, Porto Príncipe viveu sob a
batuta direta de Washington. Já no contexto da Guerra Fria, François Duvallier
assume o poder – com apoio dos Estados Unidos - em 1957 após dois pleitos
dissolvidos. Papa Doc, como era conhecido, instaurou uma sombria ditadura
que se apropriava de estereótipos do vodu para o terror policialesco. Morto, o
então presidente vitalício passou o cargo 1972 para Jean-Claude, o Baby Doc,
seu filho.
Enchendo o pai de orgulho, Baby Doc continuou a perseguir a Igreja
Católica e decretou estado de sítio em 1986. Entre a queda e exílio na França
de Jean-Claude e a eleição do padre Jean-Bertrand Aristide em 1990 houve
mais reviravoltas que na última temporada de Game of Thrones. Aristide,
inclusive, só foi tomar posse quatro anos depois, quando o Conselho de
Segurança da ONU aprovou bloqueio total ao país. Com apoio militar
norte-americano, o clérigo finalmente assumiu a presidência.
Quando tudo parecia se encaminhar para uma aparente normalidade,
Aristide foi acusado de fraude eleitoral pela oposição no começo dos anos
2000, que se levantou em grupos paramilitares e milicianos para o depor em
2004. Daí surgiu a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti,
comandada pelo brasileiro General Augusto Heleno, hoje Ministro-Chefe do
Gabinete de Segurança Institucional do Brasil.
A força-tarefa chegou a contar com mais de 30 mil militares de 15 países
diferentes, esteve lá durante as catástrofes de 2010 e terminou em 2017. A
Missão não somente falhou em trazer estabilidade política ao Haiti, como
também é comumente alvo de denúncias de violências e abusos sexuais. Até que em julho de 2021 houve outro magnicídio. Jovenel Moïse, o
presidente do país, foi morto na cama de sua residência por mercenários
estrangeiros e opositores nacionais.
Enquanto notícias da invasão de manifestantes ao Capitólio
norte-americano ainda repercutam internacionalmente como um dos maiores
ataques a democracia, o assassinato de Moïse já é notícia velha no folhetim de
tragédias haitianas. No máximo, há de servir como pretexto para mais uma
invasão bélica estrangeira no instável país, tratado como se não merecesse
estar cravado no meio do azul do mar caribe.
Há mais de meio século, um espichado país cercado de lágrimas por
todos os lados sobrevive sob a sombra da maior máquina de guerra da história
da humanidade. No oriente médio, outro bocado de oprimidos padece dos
mesmos males, exceto que sob procuração. No entanto, os fantasmas de Fidel
Castro e do Hamas parecem servir de cortina de fumaça sobre o verdadeiro
problema que enfrentam Cuba e Palestina: o bloqueio.
No Haiti, a miséria está tão intrinsecamente naturalizada que nada
parece dar jeito. E as soluções que a comunidade internacional vislumbra ao
país são as mesmas, e erradas, desde a sua independência.
Bom texto, refleti nesse similaridade entre esses dois países.
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