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quarta-feira, 24 de junho de 2020

14 anos depois de estatizar água e saneamento, Argentina intervém na Vicentín, 4º maior exportadora de soja do país


    
    Na segunda-feira (08/06), o presidente argentino Alberto Fernández anunciou por decreto a intervenção federal na companhia agropecuária Vicentín, empresa de quase cem anos que negocia perto dos três bilhões de dólares anualmente. A quarta maior exportadora no mercado de oleaginosas e cereais do país, porém, tem dívida total estimada em US$ 1,3 bilhão, a maior parte dela – US$ 255 milhões – devida ao estatal Banco de la Nación Argentina. Em dezembro de 2019, Vicentín já havia declarado suspensão de pagamentos e convocou seus quase 3 mil credores para renegociações. Para além do imbróglio econômico e financeiro, a agroexportadora se vê imersa em investigações judiciais sobre operações de crédito. 
A principal justificativa de Fernández para a interferência estatal é o do resgate do emprego dos mais de dois mil funcionários da empresa em falência e dos quase três mil produtores desamparados. A ideia da Casa Rosada é de que a Vicentín se torne uma empresa mista, com 49% de capital privado e 51% de iniciativa estatal, evitando que a marca seja comprada por investimentos estrangeiros. Por mais que a intervenção desagrade o mercado financeiro mundial, como se trata de uma empresa argentina, não cabem processos em tribunais internacionais contra a decisão do executivo. A gerência agroindustrial da Vicentín passará para um braço da petroleira Yacimientos Petrolíferos Argentinos (YPF), reestatizada em 2012 pela então presidente Cristina Kirchner - hoje vice de Alberto Fernández. Algo parecido se passou nas empresas Agua y Saneamientos Argentinos (AySA) e Aerolíneas Argentinas nos recentes governos kirchneristas, de Néstor e Cristina.
Fundada em 1949 pela decisão do governo de fundir quatro empresas de aviação, a Aerolíneas se consolidou como maior companhia aérea argentina e a principal estatal do ramo nas Américas. Como empresa nacional, teve atuação fundamental na Guerra das Malvinas (1982) quando importou clandestinamente armas da África e do Oriente Médio para munir o Exército Argentino contra o Reino Unido no arquipélago austral. Foi privatizada na década de 90 pelo então presidente Carlos Menem, cujo chanceler Guido Di Tella pretendia manter “relações carnais” com os Estados Unidos. Dividida entre as companhias Ibéria e American Airlines, a Aerolíneas perdeu boa parte de seus voos internacionais e decaiu em qualidade. Abarrotada de dívidas que chegavam perto do bilhão de dólar, foi novamente reestatizada pela Casa Rosada de Cristina em 2008. Retomando os empregos e as rotas, a companhia bateu o recorde em 2017 de transportar quase 15 milhões de passageiros e, no ano seguinte, foi premiada como a melhor empresa aérea da América Latina pela Trevelers Choice Awards.
Anteriormente, Néstor Kirchner tratara de reverter a onda privatizadora dos anos 90. Em 2006, o peronista anunciou o término de contrato com a companhia Águas Argentinas – capitalizada por grupos franceses e espanhóis desde Menem – por descumprimento de acordos e déficit de qualidade. Surgiu então a AySA, empresa pública encargada do fornecimento de água potável e saneamento em Buenos Aires. Segundo pesquisa do jornal La Nación, de 1999, a cada dia cerca de mil portenhos viraram pobres entre 1998 e 1999. Enquanto isso, a concentração de renda argentina era de 53%, bem acima da média latino-americana. Na década de 90, com a privatização de água, luz, telefone, etc, as tarifas dos serviços custavam de 15 a 30 por cento mais caras em comparação internacional.
Ouvido pelo Blog Internacionalize-se, o sociólogo Bernardo Maresca observa que a ação do governo Fernández na Vicentín acompanha políticas contempladas na Alemanha e na França, que estatizam várias empresas que estimam estratégicas, e se afasta – apesar das críticas ideologizadas – do caso venezuelano. Maresca, que é Secretário Geral da Associação Argentina de Sociologia, lembra que a Vicentín participa de 9% da produção agrária exportada da Argentina e, caso não houvesse a intervenção, seria adquirida a preços vis por empresas estrangeiras seguramente associadas às dívidas e fraudes que anteriormente quebraram a empresa. 
Vicentín fora uma das maiores doadoras da campanha do ex-presidente Maurício Macri, derrotado por Alberto e Cristina nas eleições de 2019. Perguntado se há algo de revanchismo político na intervenção econômica, o presidente do Conselho de Profissionais de Sociologia na Argentina assegura que de nenhuma maneira deve se considerar a hipótese de vingança. Maresca ainda lembra há investigações sobre endividamentos milionários no mercado agrário concentrado ao final nas eleições, quando já se sabia que Macri não seria reeleito.
A tutela do governo argentino na economia não se dá somente por apropriação de grandes empresas. Em meio à pandemia do novo coronavírus, o Ministério do Desenvolvimento Social presta assistência direta a 11 milhões de famílias com subsídios e alimentos. Assim, as medidas de isolamento social vêm mostrando eficácia na Argentina. Com isto, a intervenção na Vicentín não afetará em nada a popularidade de Alberto Fernández, ressalta Bernardo Maresca, que duvida que haverá greves em favor de uma cúpula empresarial. Para o sociólogo, o presidente goza de apreço popular por ter tomado as medidas sanitárias adequadas frente a pandemia independentemente de critérios políticos. Relembrando a larga tradição de saúde e educação públicas na Argentina, o professor comenta os acordos sanitários de Fernández com Horacio Larreta, governador da cidade de Buenos Aires que é adversário político partidário do executivo federal. Maresca afirma que o absoluto contrário se passa no Brasil: Bolsonaro está mais próximo de critérios ditatoriais e apolíticos que de práticas democráticas.  
Os presidentes de Brasil e Argentina têm tomado decisões diametralmente distintas tanto no campo sanitário quanto no econômico. Provocado a comentar as frustradas intenções do governo brasileiro de vender a Embraer para a norte-americana Boeing, o egresso da Universidade de Buenos Aires metaforizou uma raposa tomando conta do galinheiro: “teria tudo para dar errado”. Maresca defende que a política deveria ser a governança da coisa pública, e não uma facilitadora da apropriação privada da riqueza comunitária. 
Mesmo com as políticas liberais do Ministro da Economia, Paulo Guedes, o Brasil chegou a ser preterido para entrada na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) pelos Estados Unidos, que deu preferência à Argentina, antes da posse de Alberto Fernández. Na América do Sul, Chile e Colômbia já fazem parte da organização conhecida como “clube dos países ricos”.  
A economia brasileira, mesmo com a quarentena afrouxada e com a maior parte do comércio funcionando, dá sinais de que irá sofrer recessões subsequentes e inéditas. A previsão do Banco Mundial é de que o PIB do país caia 8,0% em 2020. A Argentina, que adotou medidas muito mais drásticas no enfrentamento a covid-19 que o Brasil, prevê um recuo menor na economia, de 6,5%. Outro ineditismo foi a China passar o Brasil como maior parceiro comercial da Argentina. Buenos Aires exportou a Pequim, em abril, US$ 509 milhões. Grande parte deste montante advém da soja, produto carro-chefe da Vicentín. No mesmo período, as exportações argentinas para o Brasil caíram quase 60%. 
Enquanto o Brasil enterra diariamente mais do que o que país vizinho contabilizou de mortes totais na pandemia do novo coronavírus, o governo argentino – já distante ideológica e diplomaticamente do brasileiro – vai deixando claro que independe do histórico principal parceiro econômico e do financismo internacional para se reerguer. Bolsonaro manifestou vontade de vender a Embraer para outra empresa caso o negócio com a Boeing não se concretize. Alberto Fernández, por sua vez, garante que a intervenção na agroexportadora em concordata Vicentín é em vias de garantir a soberania alimentar argentina. 

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