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sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Opinião: Trabalho escravo e trabalho análogo ao escravo








Recentemente, uma nova polêmica em torno de uma declaração do Presidente Jair Bolsonaro tomou conta das redes. Em breve resumo do que aconteceu:

1.    Na terça feira, dia 30/07, ele oficializou as mudanças em três normas de segurança e saúde do trabalho;

2.    Na mesma cerimônia, ele defendeu a “adaptação” de regras de fiscalização do trabalho análogo à escravidão;

3.    Entre as diversas falas polêmicas, ele afirmou ter juristas que entendem que “trabalho escravo” e “trabalho análogo ao escravo” é a mesma coisa;



Claramente, o Sr. Presidente desconhece o tema escravidão e sequer o  estudou antes de fazer esta declaração. Importante, no entanto, esclarecer alguns conceitos para que os colegas (apoiadores ou não do atual governo) não repliquem o equívoco.



Trabalho escravo x análogo ao escravo[[i]][[ii]]

          Antes de tudo, já adianto: as duas expressões são sinônimas, ou seja, falam da mesma coisa!

          No Brasil uma história conhecida por “caso Zé Pereira” foi o divisor de águas no reconhecimento do trabalho escravo. Em setembro de 1989, José Pereira Ferreira (17 anos) e um companheiro de trabalho, ao tentar fugir da fazenda em que trabalhavam de maneira forçada e sem remuneração, junto a outras 60 pessoas, foram emboscados pelos funcionários da propriedade. Na ocasião, acertaram com tiros a mão e o rosto de José Pereira, e mataram seu colega, de alcunha “Paraná”.

          Devido às lesões permanentes que sofreu, Zé, já em tratamento e longe da fazenda, resolveu denunciar à Polícia Federal as condições de trabalho a que foi submetido, visto que ainda havia inúmeros outros trabalhadores presos no local. Todos foram resgatados e receberam dinheiro para voltar para casa, mas nada foi feito pelo Estado Brasileiro no sentido de punir os responsáveis.

          Pois bem, ante a omissão estatal, o caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 22/02/1994. Foi somente em 2003 que o Estado Brasileiro reconheceu sua responsabilidade e assinou um Acordo de Solução Amistosa, estabelecendo compromissos a serem assumidos pelo país.

Foi só a partir dessa denúncia que diferentes países e segmentos da sociedade brasileira reconheceram a existência, a gravidade e a peculiaridade do trabalho forçado no país. Vale ressaltar que em 1992 o então representante do Governo Brasileiro negou a existência do trabalho escravo no país, indicando que os casos mencionados constituíam apenas violações na legislação trabalhista.

Apenas em 1995 a atitude do Governo passou a mudar, reconhecendo oficialmente a existência de trabalho escravo no país. O que acontece é que preferiu-se adotar a terminologia “trabalho análogo ao escravo”, em uma tentativa de demonstrar que, embora contenha elementos um pouco diferentes da antiga escravidão (em especial a negreira), as vítimas também tem seus direitos violados, em especial o direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade pessoal e o direito à proteção contra a detenção arbitrária.



No âmbito nacional, vários e diferentes termos podem ser usados para designar o trabalho forçado. No Brasil, o termo mais utilizado para se referir as práticas coercitivas de recrutamento e emprego é “trabalho escravo”. A escravidão contemporânea brasileira afeta principalmente o trabalhador no meio rural, em diferentes atividades ligadas à pecuária, às lavouras de algodão, milho, soja, arroz, feijão, café, à extração do látex (matéria-prima da borracha) e de madeira, à criação de porcos e à produção de carvão [...]



          Desde o “caso Zé Pereira”, a expressão “escravidão” passou a ser utilizada para designar todas aquelas formas de trabalho não-livre, de exploração exacerbada e desigualdade entre os homens. A partir daí, o trabalho forçado se tornou crime na legislação brasileira (art. 149, CP).



Pode-se definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador.



          Ou seja, as duas expressões não causam qualquer confusão aos empregadores, visto que tratam sobre, exatamente, a mesma coisa! Além disso, dentro da definição, encontram-se o trabalho forçado, o trabalho degradante e a servidão por dívidas.

          Ainda, apesar de, em sua fala, Jair Bolsonaro defender que é uma “minoria insignificante” que explora seus trabalhadores, entre 1995 e 2018, 54 mil trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão, sendo 42 mil no campo e 12 mil em áreas urbanas.



Legislação

          São inúmeras as legislações que tratam sobre o tema, como, por exemplo, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), em seus artigos 6º e 7º, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em seu 6º artigo, além da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais especificamente nos arts. 5º, 23º e 24º, além de diversos outros, como as regulações da OIT sobre a matéria.

          Internamente, o já mencionado art. 149 do Código Penal é o responsável pela tipificação, mas também é possível encontrar disposições do próprio Ministério do Trabalho e Emprego, como a Instrução Normativa 139/2018. Também, a Emenda Constitucional nº 81, criticada por Bolsonaro por determinar a expropriação dos terrenos utilizados com essa finalidade exploratória.

          Desta forma, ao contrário do que acredita o ilustre governante, não há o que se falar em alteração ou “adequação” da lei para à evolução e para “dar garantias ao empregador”. Quem precisa de garantias é o trabalhador, explorado diariamente tanto na zona rural como urbana, que tem seus direitos mais básicos ignorados, enquanto trabalha exaustivamente, sem receber seus salários, tem ter acesso às mínimas condições de existência e impedidos de sair do local.

          Vale ressaltar que, assim como é no campo a maior incidência do crime, é lá também que seria o maior impacto negativo em caso de alteração legislativa, para relativização ou suavização das normas. Isso porque é lá onde estão os mais vulneráveis à vitimização, tendo em vista a trajetória agrária e de escravidão no Brasil. Além disso, haveria um enorme risco para o país, inclusive nas suas relações internacionais, visto que é signatário de inúmeros acordos e tratados de combate ao trabalho escravo.



Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde[iii]



Registro da carteira dos trabalhadores (foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil)



          A gravidade da fala do presidente nos faz lembrar a denúncia feita para a Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro no caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. A propriedade agrícola, que pertencia aos Irmãos Quagliato, escravizou milhares de homens entre os anos 1980 e 2000. Foi apenas em 2017 que a procura pelas vítimas começou, para que a indenização fosse paga. A CIDH pôde apenas intervir após um longo processo interno, que não foi eficaz no momento de evitar a situação precária dos trabalhadores, e tampouco conseguiu punir os responsáveis.


Isto porque o Direito Internacional dos Direitos Humanos requer o que se chama de esgotamento dos recursos internos, isto é, uma demonstração de que a Justiça do país não foi capaz de resolver o problema sozinha. Importante lembrar que a sentença da corte sobre trabalho escravo foi a primeira aplicada a um país e é a quinta vez que o Brasil é condenado pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

          Diversas recomendações foram feitas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas infelizmente não foram cumpridas até hoje. Uma feliz notícia é que no começo do ano passado, a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, assinou a determinação da criação de uma força-tarefa composta para identificar, denunciar, processar e punir os responsáveis no caso Fazenda Brasil Verde. 

          Esse caso serviu para nos mostrar como os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde foram renegados por quase 3 décadas, deixados à margem e sem nenhuma salvação. A demora da Justiça brasileira para ajudar essas pessoas e a fala do Presidente da República fazem um paralelo temporal e deixam explícita a falta de importância do trabalhador e a tolerância ao trabalho escravo  no Brasil. 







[i] COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT Brasil, 2010.
[ii] MACIEL, Giovanna de Freitas Maciel. Tráfico de Pessoas: uma violação à dignidade humana. Trabalho de conclusão de curso apresentado no curso de Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Orientadora: Profa. Dra. Karla Pinhel Ribeiro. 2019.
[iii] BARBOSA, Manuela. Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. 2019. Trabalho bimestral para a disciplina de Direitos Humanos apresentado ao curso de Relações Internacionais. Professor: Thiago Assunção. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1z-3PODi07amhqhNar07sv4XdT73upyLZ3S355MKux5Y/edit?usp=sharing 


** Artigo produzido em uma parceria entre o Blog Internacionalize-se e o Blog Unicuritiba Fala Direito. As opiniões aqui constantes pertencem às autoras e não necessariamente refletem o posicionamento do UNICURITIBA.

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