Páginas

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Redes e Poder no Sistema Internacional: A violência como instrumento de moldagem de uma sociedade - o Etnocídio na relação entre Inglaterra e Irlanda


A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.


A violência como instrumento de moldagem de uma sociedade
O etnocídio na relação entre Inglaterra e Irlanda

Eduardo Werner *

Pierre Clastres, antropólogo e etnógrafo francês, discorre em "Arqueologia da Violência" (1980) sobre o conceito de etnocídio e a sua relação com a ideia de Estado-nação. Para Clastres, o etnocídio difere do genocídio ao não buscar sistematicamente o extermínio de um grupo étnico-racial, mas sim de sua cultura e dos seus modos de vida e pensamento. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, enquanto o etnocídio os mata em seu espírito. 

Em ambos os casos, é formada uma ideia do outro. O outro é a má diferença, sendo que o genocida busca pura e simplesmente negá-la: extermina-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocida, por outro lado, acredita que os outros são maus sim, mas que é possível melhorá-los, obrigando-os a se transformar até que se tornem idênticos ao modelo que lhes é imposto. Assim, percebe-se que o genocídio é de certa forma pessimista, pois não vê a possibilidade de salvação do outro, diferentemente do etnocídio, que é otimista, como afirma o pensador francês. 

Segundo Clastres, toda sociedade é etnocêntrica, pois busca avaliar e julgar as culturas de outras comunidades com base nos padrões de sua própria cultura. Isso não implica, porém, que toda cultura seja etnocida. Somente as sociedades, ocidentais ou não, organizadas sob um Estado é que são etnocidas, pois o etnocídio pertence à essência unificadora do Estado. A dimensão da autoridade do Estado consiste no expansionismo da sua língua e da sua cultura. A nação só pode se dizer constituída e o Estado só pode proclamar-se detentor exclusivo do poder quando as pessoas sobre as quais se exerce a autoridade do Estado falam a mesma língua e praticam, no geral, a mesma cultura. 

Os Estados ocidentais "civilizados", porém, são evidentemente mais etnocidas que os Estados não-ocidentais. Os Incas, por exemplo, também praticavam o etnocídio de outros povos, mas de forma mais branda, buscando incorporar outras culturas ao seu Império através da assimilação cultural forçada. Clastres acredita que a causa disso seja o regime de produção econômica da civilização ocidental, seja ele liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, como fora na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais tremenda máquina de destruir. Raças, sociedades, espaço, natureza, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; trata-se de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade. 

Com o conceito de etnocídio e a sua relação com a noção de Estado bem definidos, é possível entrar a fundo nas relações entre Reino Unido e Irlanda ao longo da história, já que se constitui um exemplo perfeito de etnocídio. O domínio inglês na ilha da Irlanda começou no século XII, mas só chegou a um nível considerável no século XVI, junto com a reforma protestante que acabou trazendo diferenças religiosas entre os irlandeses (católicos) e os britânicos (seja anglicanos ou presbiterianos). As políticas de plantation, colonização britânica em áreas da ilha da Irlanda, principalmente no Ulster (hoje na Irlanda do Norte), foram realizadas pelos governos de Henrique XVII, Elizabete I e Oliver Cromwell. Com essa política, grande parte das terras da Irlanda passaram para as mãos de lordes ingleses, que expulsaram violentamente os irlandeses que nelas viviam. Essas terras deveriam, necessariamente, produzir alimentos ou recursos para serem utilizados no processo de industrialização da Inglaterra, constituindo um regime colonial de expropriação dos recursos naturais da Ilha. 

Os irlandeses foram submetidos, ao longo dos séculos, a diversas leis e imposições que visavam acabar com a sua identidade e mantê-los submissos ao poder inglês: as chamadas Penal Laws, como por exemplo a proibição do uso da língua irlandesa, a exclusão dos católicos da maioria dos cargos públicos, a proibição de compra de armas e cavalos, proibição do voto, da participação no Parlamento em Westminster por mais de 100 anos, entre outras medidas. As coroas da Inglaterra e da Irlanda se juntaram em 1800, formando o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, porém as leis discriminatórias foram revogadas em sua totalidade somente em 1920 após uma série de movimentos nacionalistas que levariam à independência de parte da Ilha em 1922. 

A questão da língua e a expansão da autoridade do Estado, como afirmado acima, é de extrema importância para entendermos as relações de poder, principalmente as relações de colonialismo. A ilha da Irlanda foi, entre 1177 e 1800 (quando se tornou parte integral do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda) uma possessão direta da coroa inglesa, algo equivalente à uma colônia. Para expandir o seu domínio político e territorial sobre a Irlanda, a coroa inglesa, além de se impor militarmente para confiscar terras e forçar a conversão do povo irlandês para o protestantismo, também promoveu a morte sistemática da língua irlandesa. Os Estatutos de Kilkenny, de 1366, por exemplo, proibiam qualquer inglês ou irlandês que vivesse entre ingleses de usar a língua irlandesa, sob a pena de confisco de terras. Leis seguintes proibiam a miscigenação entre os dois grupos e exigiam que irlandeses usassem sobrenomes ingleses. 

Por muito tempo o uso da língua irlandesa foi visto como um sinal de deslealdade com a coroa britânica e a causa do temperamento selvagem e agressivo dos irlandeses, estereótipo que dura até hoje. Charles Trevelyan, importante político inglês durante a Grande Fome da Irlanda, período entre 1845 e 1849 no qual mais de um milhão de pessoas morreram e mais de dois milhões emigraram da Irlanda devida à fome e doenças ocasionadas por ela e que foram fortemente agravadas pela má administração inglesa, proferia regularmente a sua visão sobre os irlandeses, que representava grande parte da opinião pública na Inglaterra. Em um de seus discursos mais incisivos, afirmou que: 

''O julgamento de Deus enviou a fome para ensinar uma lição aos irlandeses, essa calamidade não deve ser aliviada. O real mal que nós devemos combater não é mal físico da fome, mas sim o mal moral do caráter egoísta, perverso e turbulento dessa gente''.

A Irlanda passou por uma guerra de independência e uma guerra civil no começo do século XX para que, somente em 1937, aprovasse em referendo que todos os vínculos que o país tinha com o Reino Unido fossem removidos. Todos esses séculos de domínio britânico sobre a ilha, porém, ainda deixam marcas profundas. A Irlanda do Norte, que ocupa quase 1/5 do território da ilha, faz parte integral do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Lá, somente 10,6% da população afirma ter algum conhecimento da língua irlandesa, enquanto apenas 4,130 pessoas (0,2% da população) usa a língua em casa no dia-a-dia. Na República da Irlanda, 39,8% da população afirma ter algum grau de conhecimento do irlandês, porém somente 4,2% a usam no dia-a-dia. 


* Eduardo Werner é acadêmico do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e pesquisador do grupo "Redes e Poder no Sistema Internacional" - RPSI.

Nenhum comentário:

Postar um comentário