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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Redes e Poder no Sistema Internacional: Cultura do estupro e violência sexual na Guerra da Bósnia e sua extensão no panorama das guerras

A seção "Redes e Poder no Sistema Internacional" é produzida pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Redes e Poder no Sistema Internacional (RPSI), que desenvolve no ano de 2018 o projeto "Redes da guerra e a guerra em rede" no UNICURITIBA, sob a orientação do professor Gustavo Glodes Blum. A seção busca compreender o debate a respeito do tema, trazendo análises e descrições de casos que permitam compreender melhor a relação na atualidade entre guerra, discurso, controle, violência institucionalizada ou não e poder. As opiniões relatadas no texto pertencem aos seus autores, e não refletem o posicionamento da instituição.


Cultura do estupro e violência sexual na Guerra da Bósnia e sua extensão no panorama das guerras 

Heloísa Andrecioli Orsatto *


A Guerra da Bósnia (1992-1995) e suas motivações ainda hoje levantam debates no espaço acadêmico. Pode-se dizer que o conflito foi uma mistura de fervor nacionalista e crises políticas e identitárias devido ao fim do comunismo e colapso da União Soviética, juntamente com uma complexa combinação de fatores políticos, religiosos e étnicos. 

A guerra foi travada entre o povo da recém-declarada independente Bósnia-Herzegovina, que tentava se separar da então Iugoslávia, e os sérvios, que desejavam manter o controle sobre territórios habitados por eles mesmos. Já que estava dentro dos conflitos internacionais em torno do esfacelamento da Iugoslávia, pode-se dizer que teve suas consequências chegando até muito mais longe de seu fim oficial, entrando no século XXI. 

Em 2001, o ex-presidente iugoslavo Slobodan Milosevic foi a julgamento no Tribunal Internacional de Haia e fomentou um debate que já havia aparecido logo no fim da Segunda Guerra Mundial: a definição e punição dos crimes de guerra. 

Estes crimes careceram de uma definição específica até a Segunda Grande Guerra, quando os horrores do Holocausto foram expostos e seus desdobramentos no mundo contemporâneo começaram a despontar. Inicialmente, as atrocidades cometidas por tropas em períodos de conflito eram vistas e aceitas como uma parte vil do processo da guerra, e logo depois caíam no esquecimento. O Holocausto trouxe maior visibilidade para o assunto, juntamente com o genocídio classificado – até hoje – como o pior e mais desprezível crime de guerra. A lista de tipificações criminais foi crescendo e englobando mais ações ofensivas, tais como assassinatos intencionais, tortura, aprisionamento, destruição extensiva e apropriação indevida. No entanto, um dos últimos a serem “anexados” nessa lista foi o estupro. 

Vítimas de estupro do conflito da Bósnia, 20 anos após seu fim, foram ouvidas por jornalistas e reforçaram a percepção do menosprezo presente na sociedade quanto à violência sexual e às cicatrizes psicológicas que elas deixam. 

Estima-se que o número de vítimas desse tipo de crime durante a guerra varie entre 20 e 50 mil pessoas, mas a incerteza é clara, pois a maioria das vítimas (não somente em conflitos armados) não chega a denunciar o abuso. Muitas pessoas tomam essa atitude como sendo formas de autossabotagem ou de vitimismo, mas a realidade é que a maior parte das vítimas desse tipo de crime acaba enfrentando diversas humilhações no procedimento de denúncia, quando chegar a de fato depor. No Brasil, pode ser feito um paralelo semelhante quando vemos que a maioria das autoridades responsáveis pela Delegacia da Mulher são, na verdade, homens, que são incumbidos de abrir o processo e ouvir relatos sobre uma realidade e uma violência a qual podem vir a tratar com descrença e desconfiança. 

Essa postura reforça a dificuldade e desestimula as vítimas a falarem sobre o abuso de um dos crimes mais hediondos contra a humanidade. A revista Time, em 2017, celebrou uma publicação com mulheres que haviam denunciado abusos sexuais, pontuando que o crime não é mais ou menos grave se uma mulher leva 10 minutos, 10 dias ou 10 anos para denunciá-lo. 

As vítimas ouvidas do conflito da Bósnia também relataram que acreditavam que a sociedade estava cansada e que não queria ouvir “lamúrias” dessa natureza. Tal visão é cada vez mais reforçada pelo desprezo com o qual a situação é tratada, pondo cada vez mais o crime de estupro ou violência sexual de lado, desprovendo suas vítimas de tratamento psicológico adequado e contribuindo para a criação de barreiras e bloqueios emocionais. 

Quando ocasionalmente tais denúncias chegam aos tribunais, enfrentam um acúmulo de casos e são expostas a formas diferenciadas de tratamento, como a diferença de importância dada se o crime foi cometido por um oficial de alta ou de baixa patente, por exemplo. As vítimas precisam então conviver com a realidade da injustiça enquanto veem criminosos de guerra em liberdade. Uma senhora, vítima do conflito, relatou que, com uma pesquisa, rápida conseguiu achar seu agressor no Facebook. 

A cultura do estupro se faz presente também na motivação do crime quanto a homens e mulheres. No caso de homens, a violação sexual possuí um caráter “pedagógico”, quando para a mulher, possuí um caráter de depreciação, humilhação. Isso nos remete à violência contra a mulher durante a história e principalmente a observação que a filósofa Simone de Beauvoir fez de que a opressão contra a mulher não encontra nenhum paralelo na natureza. 

A forma como tais questões são noticiadas para o mundo, evitando termos “fortes” e de violência considerada explícita também reforça o fenômeno do silêncio. Como afirma uma das vítimas de estupro na Guerra da Bósnia, 

“Quando você perde um braço ou uma perna, isso é visível, mas quando sua alma está machucada, isso é invisível”.

* Heloisa Andrecioli Orsatto é acadêmica do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Redes e Poder no Sistema Internacional".

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