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sexta-feira, 7 de março de 2014

O Lobo de Wall Street – uma caricatura do mundo contemporâneo?



Por Carlos-Magno Esteves Vasconcellos*

Seu João possui um barco pesqueiro. Não é um barco muito grande, mas suficiente para atender os propósitos de seu proprietário: empreitadas diárias mar a dentro a fim de prover os meios de subsistência da família. Os peixes que seu João traz diariamente do alto mar são invariavelmente vendidos no mercado da cidadezinha onde mora. Com o dinheiro obtido, seu João sustenta uma família de seis pessoas: ele, a mulher e quatro filhos.
Um belo dia, um simpático e jovem forasteiro impecavelmente vestido vem lhe procurar no mercado onde comercializa suas preciosas iguarias marinhas. O rapaz tem fala mansa e envolvente. Cada palavra que pronuncia parece uma peça de puzzle que, à medida que ganha forma, aumenta a curiosidade de seu João. Lá pelas tantas, depois de muita conversa, o forasteiro lhe explica o motivo que o traz àquele lugar: gostaria de oferecer a seu João a possibilidade de ampliar seus negócios através da compra de um barco novo e maior, assim como equipamentos de pesca mais sofisticados. E tudo isso sem custo nenhum para seu João.
A proposta é surreal. Seu João não acredita no que está ouvindo e pede ao jovem que repita a proposta: “Você está me oferecendo um novo barco, maior que meu barco atual, e instrumentos de trabalho muito melhores que os meus, sem custo?”. 
“Isso mesmo”, responde o jovem com serenidade e convicção. “Tudo o que precisamos é encontrar pessoas que aceitem de bom grado se tornarem seus sócios na expectativa de que a sua prosperidade permita-os auferir algum lucro!”, completa.

Seu João está atordoado: “E onde estão essas pessoas? Onde vamos encontra-las? Aqui nesta cidade apenas os bancos emprestam dinheiro e cobram juros extorsivos!”. 
“Não se preocupe”, diz o jovem com segurança. “Na cidade onde moro há muitas famílias podres de ricas e que não sabem o que fazer com suas fortunas. Adoram emprestar dinheiro para homens empreendedores como o senhor. Conheço muitas pessoas assim e tenho certeza que estarão dispostas a colocar importantes somas de dinheiro em um projeto promissor como o seu!”, assegura-lhe. 

Alguns meses mais tarde, tendo sido concluídos os trâmites legais, a modesta atividade pesqueira de seu João foi transformada em uma empresa com capital acionário e negociável no mercado financeiro. Seu João não tinha a menor idéia do que isso significava mas, agora, tinha um barco novo e maior que o antigo, tinha também equipamentos de pesca mais sofisticados, e tudo isso não lhe custara nada! Outra coisa que seu João nem imaginava é que o dinheiro que recebeu, para a compra do barco novo e dos novos equipamentos, era uma pequena fração do valor que o jovem forasteiro havia arrecadado com a venda das ações de sua nova empresa. Muito possivelmente, seu João teria, de agora em diante, uma vida melhor; as pessoas que compraram ações de sua empresa talvez recebam algum rendimento pelas ações que possuem; mas o jovem forasteiro, que antes da operação que acabara de consumar não possuía nada mais que ousadia e astúcia, agora se transformara certamente em um milionário.

Negócios como esse são rotina no mercado financeiro internacional. Alguns muito mais espúrios, verdadeiras falcatruas que produzem fortunas. O segredo do negócio? Só os lobos sabem, ou melhor, sabiam. Porque com O Lobo de Wall Street, Martin Scorsese revela-nos o segredo dos lobos. Não de lobos comuns, mas de lobos financeiros, uma espécie de predador em rápida proliferação nas sociedades contemporâneas e, particularmente, nos Estados Unidos, a meca do capitalismo financeiro. O filme de Scorsese retrata um pouco da história de vida do especulador – quer dizer, lobo norteamericano Jordan Belfort – e tem como propósito principal expor a delinquência e a violência que tomaram conta do mercado financeiro entre o fim do século passado e o início do século XXI, mas se propõe também alertar as pessoas que ainda usufruem um estado de sanidade mental sobre o perigo a que o capitalismo financeiro expõe a humanidade (conferir entrevista de Scorsese em: http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=6602).

Acontece, porém, que ao abordar o funcionamento do mercado financeiro norteamericano, Scorsese está automaticamente lidando com o que há de mais sofisticado na economia mundial contemporânea, isto é, com a vanguarda econômica e cultural da sociedade internacional. Isso mesmo, afinal de contas o capitalismo financeiro nada mais é que uma nova etapa do desenvolvimento do capitalismo mundial. Por isso, o padrão de comportamento dos lobos nova-iorquinos não deve ser entendido como fenômeno isolado ou circunscrito à Wall Street, mas sim como padrão de comportamento social que o capital impõe ao mundo inteiro, independentemente da esfera de reprodução da vida humana: economia, política[i], educação, arte, relacionamentos pessoais, esporte[ii], etc...

Ganhar dinheiro é o mantra sagrado da sociedade do capital. É a essência mesmo do capital, transformar dinheiro em mais-dinheiro. Mas, hoje, de um modo diferente, subjugando a este propósito todos os valores sociais. É por isso que o filme de Scorsese faz desfilar diante do público cenas de luxúria, ganância, mentira, corrupção, prevaricação, devassidão, adultério, ostentação, voluptuosidade, futilidade. Tudo é aceito e até mesmo socialmente justificado quando o propósito é ganhar dinheiro. O capital instrumentalizou o homem para servi-lo e, ao mesmo tempo, para negar-se a si próprio. O Lobo de Wall Street não é apenas um filme sobre Jordan Belfort ou sobre o mercado financeiro norteamericano. Ele é mais do que isso: é uma caricatura da sociedade capitalista do início do século XXI; é um olhar para dentro do mundo que habitamos.


*Prof. Carlos-Magno Esteves Vasconcellos é doutor em Economia pela Escola Superior de Economia de Varsóvia (SGPiS) - Polônia, professor titular dos cursos de graduação em Relações Internacionais e Direito e da pós-graduação em Diplomacia e Relações Internacionais do UniCuritiba.

  

[i] Ao sair da sala de cinema podia fazer uma transposição imediata e direta de tudo o que vi no filme para o mundo real da política brasileira. O personagem interpretado por Leonardo di Caprio nunca me parecera tão familiar.

[ii] Em recente entrevista à revista norteamericana The Nation, o “ex-atleta negro John Carlos, que se tornou famoso em todo o mundo por ter feito a saudação dos Black Panthers (Panteras Negras) – o braço esticado para o alto, com o punho fechado – ao receber a medalha de bronze pelos 200 metros rasos, durante os Jogos Olímpicos do México, em 1968” teria declarado a respeito do Comitê Olímpico Internacional (COI): “eles só veem o ‘verde’ [dólares]. O ‘verde’ tomou conta do tecido moral dos Jogos Olímpicos”. (cf. Arbex Jr., Seguir a Estrada Menos Percorrida, Caros Amigos, ano XVII, nº 203, fev 2014, p. 9)


2 comentários:

  1. Eu saí da sala de cinema com a sensação de que alguém trataria deste assunto, e aqui estamos (risos). Interessante análise, professor.

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  2. Comentários precisos professor Dr. Carlos Magno.

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