RESENHA:
MAIONE,
Emerson. Ordem e justiça na sociedade internacional pós-11 de setembro. Revista
Brasileira de Política Internacional, Brasília, 52(1), p. 133-148, 2009.
Por Rafael Pons Reis
Em certa
medida o núcleo conceitual das Relações Internacionais contemporâneas, como
disciplina, dá grande destaque às relações sociais internacionais desenvolvidas
no contexto próprio e característico da sociedade internacional, como seu
objeto de conhecimento. Diante da importância de entender o complexo fenômeno
que constitui a sociedade internacional, Hedley Bull (1995, p. 9) diferencia
“sociedade internacional” e “sistema internacional” da seguinte forma:
“Um
sistema de Estados (ou sistema internacional) é formado quando dois ou mais
Estados têm contato suficiente entre si e impacto suficiente sobre as decisões
do outros...para tornar o comportamento de cada um necessário aos cálculos do
outro. Uma sociedade de Estados, cientes de certos valores e interesses em comuns,
forma uma sociedade no sentido de se conceberem vinculados por um conjunto
comum de regras em suas relações e por participarem do funcionamento de
instituições comuns”.
Assim sendo, o objetivo central do texto de Emerson
Maione consiste em analisar como a abordagem da Sociedade Internacional tem
conseguido explicar os rumos da política internacional no pós 11 de setembro.
Em específico, o autor questiona de que forma o emergente padrão de crise
iniciado com os ataques da rede Al Qaeda nos Estados Unidos (EUA) e sustentado
pelas guerras contra o Afeganistão e Iraque, sugere uma nova perspectiva em que
deve ser reavaliada a afirmação dos estudos da Escola Inglesa de que a
sociedade internacional continua sendo um elemento central na análise da
política internacional. Para tanto, propõe-se a fazer um levantamento acerca
dos últimos estudos de autores da Escola Inglesa de forma a verificar como tal
teoria pode ajudar a compreender a atual sociedade internacional. O estudo é
dividido em duas seções, nomeadas, respectivamente, por “ordem e justiça”, em
que analisa os aspectos normativos que a Escola Inglesa destaca, e “Sociedade
Internacional no pós-11 de Setembro”.
Na primeira seção, destaca a distinção feira por Hedley
Bull entre as concepções pluralista e
solidarista da sociedade
internacional, entendidas como “duas visões acerca da possibilidade da promoção
da justiça na política global.” (Maione, 2009, p. 135). Em tese, o pluralismo
descreve sociedades internacionais “tênues” (thin) onde apresentam poucos valores e visões compartilhados entre
os Estados, em um cenário marcado pela defesa das soberanias e no desenvolvimento
de regras de coexistência. Por sua vez, o solidarismo refere-se a sociedade
internacionais tidas como “densas” (thick),
em que se verifica um maior compartilhamento de valores, visões e regras comuns
para o gerenciamento de problemas coletivos. Pluralismo e solidarismo devem ser
entendidas como pólos opostos de um mesmo espectro, que representam diferenças
de grau e não são necessariamente contraditórios.
Andrew Hurrel destaca dois outros conceitos: densidade e deformidade. O primeiro refere-se na constatação de uma densa e
integrada rede de instituições e práticas compartilhadas entre os Estados, em
que as expectativas sociais de justiça e injustiça tornam-se mais
estabilizadas. Já a deformidade está relacionada com as grandes disparidades de
poder existente na sociedade internacional. Assim sendo, Hurrel argumenta que a
combinação de densidade e deformidade condiciona o modo como se
pensa a relação entre ordem e justiça, ainda que a ordem jurídica no pós-Guerra
Fria tem se desenvolvido em direção ao solidarismo.
Sobre a
questão da justiça internacional no atual contexto da globalização, Hurrel afirma sobre a improbabilidade
de se prover uma meta-narrativa para a construção de valores e ética para o
século XXI – como o liberalismo global. Em contraponto, aponta um maior debate
e contestação sobre questões de justiça por uma miríade de atores, provenientes
de variados contextos políticos, culturais, religiosos e linguísticos. Nesse
sentido, argumenta que a “justiça global não é algo que pode ser deduzido de
princípios racionais nem pode ser resultado de uma única visão de mundo,
religiosa ou secular; é, ao contrário, um produto negociado do diálogo e de
deliberação e, portanto sempre sujeito a revisão reavaliação” (2003, pp. 44).
Na segunda seção, Maione destaca
os diferentes assuntos discutidos na Escola Inglesa nos anos 1990 (análises
sobre a distinção de Bull entre pluralismo e solidarismo) e no pós-11 de
Setembro (impacto dos EUA nas instituições internacionais; sociedade ou
hierarquia; império ou hegemonia; terrorismo; impacto da sociedade mundial na
internacional; imunidade dos não-combatentes; guerra justa, dentre outros) de
forma a examinar alguns dos mais recentes trabalhos de autores da Escola
Inglesa para analisar como tal abordagem permite entender o atual momento da
sociedade internacional.
Em seus
estudos, Tim Dunne, parte de uma pergunta: “Até aonde a sociedade internacional
pode ser mantida dentro de um sistema hierárquico?” Destaca que na história
sempre houve graduações de hierarquias, mas o pós-11 de Setembro é diferente
por duas razões: i) a escala de superioridade dos EUA; e ii) a “ideologia do
excepcionalismo” que conduz a política externa dos EUA. Sobre a questão se é
possível verificar elementos da sociedade internacional nos dias atuais, Dunne
menciona que é importante distinguir entre uma noção fina de sociedade internacional e outra densa. Para Dunne, a noção fina encontra-se presente uma vez que os
Estados continuam a reconhecer e respeitar suas soberanias. Já na concepção
densa da sociedade internacional, “cujo principal propósito é a regulação ou
eliminação de formas de guerras que ameaçam a ordem internacional, então há
boas razões para temermos que o elemento de sociedade esteja ausente da
política mundial”. (ibid.: 306, apud
Maione, p. 138). Destaca que as principais ameaças para a noção “densa” da
sociedade internacional são: i) a ausência de uma balança de poder; e ii) falta
de entendimento/consenso entre as potências. Dessa forma, Dunne vê que hoje a
principal ameaça da sociedade internacional parece ser uma revolta contra as
instituições criadas pelos EUA no pós Segunda Guerra Mundial.
Em uma
perspectiva histórica, Dunne afirma que aquilo que diferenciava a clássica
sociedade internacional europeia era que os seus membros concordavam entre si
em aceitar a manutenção de uma estrutura hierárquica, uma vez que os mesmo
privilégios estendiam-se mutuamente. Nesta passagem, o autor questiona se
atualmente os membros da sociedade internacional estão dispostos a aceitar os
privilégios que os EUA concedem para si. A resposta é não, o que traz a
perspectiva de que vivemos em um mundo em que uma fina sociedade internacional
coexiste com uma hierarquia. Ao qualificar os EUA com o termo “hiperpotência”,
menciona que quando a hiperpotência impõe a lei sobre os outros Estados, ao
mesmo tempo, que se exime de qualquer autoridade fora do Estado, então os EUA
cruzaram a delicada fronteira que separa a sociedade da hierarquia. Chama a
atenção para o conceito de Raymond Aron dos EUA como uma “república imperial”,
para tentar entender como é “possível para uma democracia constitucional
baseada no estado de direito agir de maneira a enfraquecer estes mesmos valores
internacionalmente.” (Maione, p. 139-140).
Dunne
aponta quatro fatores que podem ajudar a elucidar o comportamento da
hiperpotência em não acatar as regras, normas e instituições internacionais
vinculantes para os demais membros da sociedade internacional: i) a emergência
de um entendimento altamente permissivo; ii) o argumento afim de que a ação preventiva
é legitimada mesmo quando nenhuma ameaça iminente foi demonstrada; iii) a
hiperpotência é contra estender a outros quaisquer dessas justificativas para o
uso da força; e iv) os EUA continuam a ver as restrições jurídicas domésticas
na ação internacional como sendo mais importante que o direito internacional.
Outro
importante autor que trata da abordagem da Escola Inglesa é Galia
Press-Barnathan (2004). Analisa cinco elementos por meio dos quais a ordem pode
ser alcançada e mantida, respectivamente, pela: i) Balança de poder (por meio
da dissuasão – deterrence); ii)
Direito Internacional; iii) Diplomacia; iv) gerenciamento da ordem pelas
grandes potências; e v) guerra. Destes cinco elementos, analisa o status de
três mecanismos no pós-11 de Setembro: i) dissuasão, ii) o gerenciamento pelas
potências, e iii) o papel da diplomacia multilateral. Sobre o primeiro
mecanismo, Press-Barnathan (2004) afirma que o perigo da proliferação de armas
de destruição em massa e a aquisição destas por grupos terroristas, tornou-se
necessário capturar tanto o uso como a aquisição destas. A lógica do uso da
guerra preventiva se faz presente nesse contexto, como fez os EUA diante dos
ataques terroristas.
Uma
importante passagem de Press-Barnathan (2004) considera que o hegemon só pode moldar e remodelar as
regras do jogo se tiver suficiente legitimidade ou soft power, na feliz expressão de Joseph Nye. Desse modo, apesar de
muitos analistas e críticos terem apontado que as Nações Unidas não foram
capazes de desempenhar o papel positivo de garantir a paz e a segurança
internacional - sobretudo, de evitar a guerra no Iraque -, o não curvamento
desta instituição perante a pressão americana fez com que vários Estados
pudessem manifestar coletivamente sua oposição à guerra, permitindo assim evidenciar
a natureza unilateral do comportamento americano. O autor argumenta que a derrota diplomática
norte-americana – uma das maiores durante os últimos cinquenta anos – frente a
ONU revela as limitações da hegemonia estadunidense, e a importância do
gerenciamento compartilhado da sociedade internacional diante de potenciais
ameaças à ordem internacional.
Ao
finalizar o artigo, Maione destaca algumas das contribuições de Andrew Hurrell
acerca do papel das normas jurídicas e morais na política internacional pós-11
de Setembro. Segundo Hurrell, os EUA ao procurarem apoio de determinadas
instituições internacionais para sua ação no Afeganistão, não pode ser
explicado tanto pelo institucionalismo neoliberal como no solidarismo que foca
no aumento da ambição jurídica (e moral) da ordem internacional. Assim, para o
referido autor (Hurrel, 2002, p. 190), o engajamento multilateral dos EUA no
contexto do Afeganistão pode ser explicado a partir do caráter da hegemonia estadunidense
que às vezes resistem às pressões constitucionalistas do sistema como “(...) a
longa tradição de ambivalência com relação às instituições internacionais,
revelando um multilateralismo seletivo”. Hurrel menciona ainda sobre a
relevância da legitimidade como uma aproximação pragmática entre a efetividade
política e a necessidade de um consenso moral.
Nas
considerações finais, Emerson Maione destaca a relevância de temas voltados
para o estudo da Escola Inglesa no cenário atual, tais como: a importância das
normas e regras, questões de legitimidade, as tensões entre outros. Cita
Linklater (Linklater e Suganami, 2006, p.149) diante da observação de que os
ataques terroristas de 11 de Setembro fazem parte da contínua “revolta contra o
ocidente”, que Bull (1985) entendia como parte da expansão da sociedade
internacional.
À guisa
de conclusão, o texto de Emerson Maione chama a atenção do leitor sobre os
últimos estudos da Escola Inglesa, em especial sobre os elementos normativos,
com a questão da ordem e justiça na sociedade internacional e os
desenvolvimentos teóricos a partir do pós-11 de Setembro. Trata-se de um
importante objeto de análise tendo em vista as recentes transformações na
agenda de segurança e defesa dos estados. Para tanto, o autor tece seus
comentários apoiando-se em importantes autores da Escola Inglesa, como Tim
Dunne, Galia Press-Barnathan e, em especial, Andrew Hurrell.
Na
primeira parte de seu artigo, em que Maione se propõe a discutir a questão da
justiça na Escola Inglesa, em nosso entender, o autor não dá conta de explicar
como as teorias normativas ajudam a elucidar o processo de construção de uma
estrutura intersubjetiva. Para tanto, o autor poderia relacionar de forma mais evidente
a teoria normativa com as práticas dos Estados no cenário internacional bem
como os possíveis desdobramentos para a análise da sociedade internacional.
Rafael Pons Reis é Doutorando em Sociologia Política pela UFSC e professor das disciplinas de Teoria das Relações Internacionais e Política Externa Brasileira.